Quando souberam que Zau e eu vivíamos há dois anos juntos no Brasil, Márcia e Neuza, duas brasileiras recém chegadas, convidaram Marli para o quarto delas. Durante um mês, moramos sozinhos, até que uma sul-africana aparece para preencher a terceira vaga do quarto. Muito simpática e liberal, como todo africano não muçulmano, não se importou que eu continuasse a viver com Zau. Porém, a alegria não durou muito, pois um professor descobriu o que se passava e me expulsou do quarto, passando a controlar a situação. Era o professor responsável pelos alunos africanos, ao passo que eu tinha também um professor responsável, o Mariano, um espanhol exilado da Guerra Civil Espanhola, que não regressou ao seu país. Mariano era uma pessoa legal, que segurou a bronca e até riu da situação, talvez por ser latino como nós. A personalidade de Mariano sempre foi meio uma incógnita. Ele aparecia frequentemente para visitar-nos, pois Zau, Marcos e eu estávamos sempre juntos. Nunca soubemos se este interesse da parte dele não era porque nós já tínhamos sido detectados como seres alienígenas no império. Parecia-nos triste e saudoso, mas ao mesmo tempo era um defensor inquebrantável do regime. Reconhecia que quem mandava no país era a linha dura do PCUS, mas acreditava que não havia outro caminho. Talvez, no fundo, Mariano fosse mesmo um daqueles grandes homens que acreditam nos ideais, ainda mais ele, que havia participado numas das guerras mais sangrentas do século passado. Questionado, garantiu que estava na URSS de livre vontade, tanto que havia já viajado à Espanha, para visitar familiares, nos anos 70. Mas admitiu que durante muitos anos, durante a ditadura stalinista, foi um prisioneiro, sem poder sair do país. De qualquer forma, Mariano nunca falhou com a gente, muito pelo contrário, concedeu-nos alguns privilégios enquanto estudantes. Por exemplo, os alunos que haviam chegado com atraso, como era o nosso caso, não teriam férias de inverno naquele ano. Mariano veio ter comigo e disse que havia sido escolhido para ler um discurso no ato de encerramento do semestre, por causa dos meus progressos com a língua russa. Além do mais, disse que liberava a Zau para as férias e ainda conseguiu um quarto só para nós na casa de descanso onde ficamos por duas semanas, a norte de São Petersburgo, que naquela época se chamava Leningrado. Delicadamente, declinei o convite do discurso, alegando não me sentir bem nestas situações, ao que o espanhol, meio contrariado, acedeu. Eu iria perder o contato com Mariano quando abandonei a universidade para estudar música. Soube depois que ele se aposentou e acabei por nunca mais ter notícias dele.
Mariano provavelmente ficou sabendo, como eu, que Iusef Stálin havia traído os republicanos espanhóis. Com a abertura de Garbatchov, os historiadores começaram a contar a verdadeira história da URSS. Artigos em jornais especializados e programas de televisão revelaram fatos até então desconhecidos do grande público, como a política externa soviética nos anos de Stalin, que regia com mão de ferro o movimento comunista internacional. Sabe-se hoje que Stalin preferiu não apoiar devidamente os republicanos espanhóis, que lutavam contra Franco na guerra civil espanhola, em 1936, em respeito à França, que não admitia um estado socialista a ocidente, orientado por Moscou. Terão havido conversações secretas ao mais alto nível entre franceses e soviéticos neste sentido, que permitiram que tivesse lugar uma das guerras mais sangrentas do século XX, em que morreu o poeta Gabriel Garcia Lorca* e que deixou como herança para a humanidade uma das obras primas do pintor Pablo Picasso*, alusiva aos bombardeios sobre a população civil da cidade de Guernica*.
Quando penso em Mariano, eu, que levo mais de vinte anos a viver fora do Brasil, imagino como seria estranho morrer numa terra estranha, exilado da pátria, na defesa dos ideais de uma sociedade que viria a se desfazer nos finais dos anos 80. Será que ele voltou para Espanha com o advento da perestroika? Eu bem gostaria que sim.
1 comment:
colega vosse não arranja um tradutor bom de portugues x espanhol
muito obrigado
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