Friday, January 14, 2011

De saco cheio

Nos tienen hasta las huevas

Se havia alguma coisa que os responsáveis políticos da Patrice Lumumba não dispensavam, nem mesmo durante as férias, eram os meeting políticos. Já em Moscou era a mesma coisa. Toda e qualquer atividade era sempre anunciada com discursos de louvor ao regime. Os estudantes que integravam as células dos partidos comunistas e organizações de esquerda de seus países aproveitavam este gosto dos burocratas da universidade para organizar atos semelhantes. Uma data importante, um dia de libertação nacional, qualquer coisa que fosse servia de pretexto para se pedir um auditório à reitoria e organizar um sessão política. Estas cerimônias eram inócuas, ou seja, não produziam qualquer efeito nalguma revolução que estivesse prestes a acontecer, mas eram bem vistas perante a universidade e serviam para alguns estudantes se firmarem perante os soviéticos como grande revolucionários. Pelo menos, eles assim o pensavam.

Esses comícios em pequena dimensão eram sempre seguidos de um ato cultural. O material humano da Lumumba, os ritos e tradições de cada povo, era como que colocado numa vitrine, em exposição curiosa, associado à luta de classes como fator contributivo no processo revolucionário. Para desenvolver atividades de caráter cultural é que existia o Interclube da universidade, onde duas dedicadas professoras tratavam de comandar o que se podia chamar talvez de “núcleo artístico”. Era como uma companhia de dança e música, em que participavam os estudantes de todo país que tivesse número suficiente de alunos para organizar um número qualquer. Os colombianos dançavam a “cumbia”; os peruanos tinham um grupo de música andina; havia um grupo de danças africanas, de vários países; os sul-africanos tinham um coral espetacular, daqueles que Paul Simon utilizou no seu disco “Graceland”; os brasileiros dançavam o samba e por aí afora.

Já antes das férias, comecei a ser convidado a participar da caravana de artistas da Lumumba. Aos sábados, o grupo costumava se apresentar em clubes de bairros de Moscou, em auditórios de fábricas, para plateias de cidadãos comuns, que enchiam as salas para ver o que de certa forma era um espetáculo estrangeiro. Para mim, foi uma experiência interessante e bastante enriquecedora, que propiciava encontros inauditos, pois os russos sempre queriam dar uma palavrinha no final aos artistas. Nos anos em que estive na URSS, me apresentei, na maior parte das vezes sozinho ao violão, nos mais variados palcos. Cantei para platéias de veteranos da 2ª guerra mundial, para velhotes de lar de idosos, para russos da periferia de Moscou, para os pioneiros* e, inclusive, para os guerrilheiros do Arafat*. Os russos gostavam e aplaudiam muito, porque são um povo que respeita profundamente a cultura de outros povos, com uma intensa curiosidade por tudo o que fosse importado, ainda mais naqueles tempos de informação filtrada.

Ao mesmo tempo que dava um certo gozo participar nestas coisas, pois sempre era uma oportunidade de passear, conhecer outras pessoas e lugares, havia que se ter uma certa paciência em relação à politiquice e aos atores do ato anterior do programa. Quando estávamos na Moldávia, ninguém gostou quando, em pleno ensaio para a sessão de encerramento das férias, um dos professores exigiu que se formasse um grupo para se cantar um canção que fosse típica da América Latina, pelo que resolvemos fazer uma pequena vingança contra o Big Brother. Formamos um côro, acompanhado de vários violões e ensaiamos o clássico Guantanamera. Só que, por sugestão de um costarriquenho, substituímos o refrão por “hasta las huevas, nos tienen hasta las huevas”, que, traduzindo, quer dizer algo assim como “até os ovos, nos têm até aqui pelos ovos”. Quando nos apresentamos, no anfiteatro ao ar livre do campo de férias, depois do famigerado meeting, os estudantes latinos desataram às gargalhadas, o que fez com que uma das professoras do Interclube viesse me perguntar mais tarde o que se tinha passado, o que havíamos nós cantado para obter aquela reação da platéia. “Nada”, afirmei, “devem estar contentes porque vamos voltar para casa”, continuei, com vontade de me rir. Creio que não a consegui convencer, pois balançou a cabeça e murmurou algo como “ah, seus malandros”.

A divisão do mundo e a velha ordem mundial

O Olimpo na Terra

Ialta, estrategicamente localizada numa pequena baía na península da Criméia, no Mar Negro, é uma pequena cidade cercada por montanhas, com muito sol e temperaturas amenas o ano inteiro. Lugar privilegiado pela natureza, onde se cultiva tabaco, uvas e frutas cítricas desde o século XII, quando venezianos e genoveses se instalaram na península, a Criméia passou de mãos em mãos no decorrer dos séculos até ser entregue à Ucrânia durante a era soviética, sendo hoje o segundo porto internacional daquele país a seguir a Odessa. Manuscritos de autores gregos contam que, entre os séculos X e III a. C., viveu na região um povo chamado Tauri, que se dedicava à pesca, agricultura e pecuária e também à pirataria em nome da deusa Deva, dedicando-lhe sacrifícios humanos. Um senhor feudal russo, de nome Fiodor, entregou a Criméia a um sultão turco, em 1475, tendo sido tomada de volta pela Rússia em 1783. Para escapar do rigoroso inverno moscovita, os czares russos escolheram o lugar como a sua residência de verão, uma tradição que foi mantida pelos líderes do PCUS. Com o poder soviético, virou o local de repouso por excelência dos russos, que passaram a construir sanatórios, termas e casas de descanso na península. No outono de 1941, foi ocupada pelos alemães no âmbito da segunda grande guerra, tendo sido libertada após sangrenta batalha em 16 de abril de 1944.

Região disputada por reis e piratas desde tempos remotos, não é de admirar que os líderes das três potências que estavam a derrotar os exércitos de Hitler tenham escolhido Ialta para, em fevereiro de 1945, fazer planos antecipados para a partilha do mundo. No palácio Livadia, mandado construir por Nicolau II, reuniram-se Franklin Roosevelt, presidente norte-americano, Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, e o anfitrião Iussef Stálin, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Em cima da mesa, na agenda dos trabalhos da conferência, a divisão das zonas de influência da Europa e a criação de uma nova ordem internacional que viesse substituir a fracassada Sociedade das Nações*.

Quando os Aliados se reúnem em Ialta, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, a vitória contra os países do Eixo era já uma certeza. A Alemanha fora ocupada e não resistiria muito mais tempo. A Itália se rendera e o Japão ainda preocupava os Estados Unidos, que queriam neste encontro envolver a URSS na guerra contra o país do Sol Nascente. Como a política americana naqueles tempos era de não ingerência nos países europeus, Roosevelt deixou que Stálin silenciosamente colocasse a sua pata sobre a Europa do Leste, apesar das tentativas de Churchill de fazer pesar a balança para o outro lado, tentando incluir uma França em frangalhos no grupo dos países vencedores, com poder político-diplomático para dar cartadas na reconstrução do continente.

A questão central da partilha da Europa envolveu a Alemanha e Polônia. Decidiu-se que o território germânico seria dividido em três zonas de ocupação - o leste para a URSS, o sul para os EUA e o oeste para a Grã-Bretanha - e, no que toca à Polônia, Roosevelt e Churchill aceitaram um governo imposto por Moscou e recortaram o país de tal forma que ficou irreconhecível, cedendo um terço do território à URSS, incluindo cidades importantes como Vílnius, Brest e Lvov. Stálin e Roosevelt acordaram também a divisão dos despojos de guerra na vitória sobre o Japão. A URSS ganhou a posse das ilhas Sacalinas e Curilhas, que ainda hoje pertencem à Rússia, resultando num impasse diplomático que durou dezenas de anos, com a guerra sendo encerrada oficialmente quando Vladimir Putin visitou o Japão em (:XXXXX) e devolveu o arquipélago aos nipônicos.

Os grandes líderes acordaram também em Ialta realizar uma conferência, naquele mesmo ano, em São Francisco, nos Estados Unidos, para criar a Organização das Nações Unidas. Mais uma vez, Stálin adiantou-se no jogo de xadrez que iria redesenhar o mundo no pós-guerra conseguindo que a URSS tivesse direito a três assentos na Assembléia Geral da ONU, sendo representada pela Federação Russa, Ucrânia e Bielorússia. Durante a conferência, o premier inglês tentou a todo custo conter o crescimento da influência soviética na Europa, mas Stálin tinha na mão o trunfo de ter empurrado as tropas nazistas até território alemão e ter ocupado com o Exército Vermelho mais da metade do continente. Churchill sabia que o seu homólogo soviético planejava implantar na Europa de Leste regimes de orientação comunista, mas a Grã-Bretanha estava arruinada pela guerra e, se tinha ainda alguma influência política, era mais pelo peso do Império Britânico do que pelo seu mérito militar durante o conflito.

Na Conferência de São Francisco, em junho de 1954, representantes de 50 países redigiram a Carta das Nações Unidas, criando a organização em 24 de outubro de 1945 com o objetivo de manter a paz e a segurança internacionais, desenvolver a cooperação entre os povos, promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Foi decidido também criar o Conselho de Segurança da ONU, ao qual teriam acesso somente as grandes potências, cinco delas com lugar permanente e seis com lugar não-permanente. Os países com assento permanente no Conselho de Segurança, os únicos que teriam direito a veto, eram os Estados Unidos, a União Soviética, a Grã-Bretanha, a China e a França.

Morris Albert, ou, Maurício Alberto

Feelings

Ao final da temporada no Mar Negro, embarcamos no transatlântico Maxim Gorki para um cruzeiro de dois dias que nos levaria até o porto de Odessa, no sul da Ucrânia, com uma paragem na cidade de Ialta, na Criméia. Quando olhamos o navio, nem acreditamos, mas, uma vez embarcados, a coisa mudou de figura. Aos estudantes, não estavam reservados camarotes. Tivemos que nos acomodar na parte de baixo do navio, numa zona onde só haviam poltronas, em meio a dezenas de russos. Até os professores não tiveram direito a uma cama, restando-lhes partilhar a nossa companhia, sem quaisquer privilégios. Tirando este detalhe, a viagem foi ótima, a comida do restaurante era muito boa e as duas noites de luar que passamos no Mar Negro foram inesquecíveis. Interessante foi notar que os russos em férias, apesar da rigidez do regime, comportavam-se em férias de uma maneira diferente do seu cotidiano habitual, onde a sisudez imperava nos locais de trabalho ou universidades. Já em Sochi pude observar que a cidade não era diferente de qualquer estação balnear dos países ocidentais, com as pessoas a andar em calções e chinelos, toalhas às costas, com muito maior descontração e um sorriso pouco habitual, talvez trazido pelo sol. Os russos que tomavam champanhe à beira da piscina do navio, que era bastante luxuoso, faziam grande algazarra, com brincadeiras talvez um pouco infantis, jogando-se uns aos outros na água. Pela conduta e pela maneira com que se expressavam, via-se que eram pessoas normais, simples trabalhadores, gozando merecidas férias no final de um ano operando numa indústria ou, quiçá, na construção civil. Para um médico ou professor universitário, seria certamente uma despesa maior no seu orçamento usufruir de semelhantes férias. Por outro lado, a elite soviética, membros do comitê central do PCUS, astronautas ou artistas famosos, gozava de privilégios um pouco maiores. Muitos tinham iates e lanchas, casas de descanso privadas, que lhes eram retirados quando caíam em desgraça.

Na primeira noite de viagem, quando assistíamos ao show no restaurante do navio, Marcos, Zau e eu apanhamos um grande susto quando o cantor de serviço, acompanhado por uma pequena orquestra, interpretou a canção Feelings, tão nossa conhecida. Até aquele momento, não havia me dado conta de como esta música do brasileiro Morris Albert, ou Maurício Alberto, era conhecida nos quatro cantos do planeta. Até na longínqua Indonésia, anos mais tarde, o ministro das relações exteriores, Ali Alatas, foi filmado num karaokê a cantá-la completamente embriagado*. O mais engraçado é que nunca encontrei alguém que soubesse que Feelings foi composta por um brasileiro. Para quem não sabe, Morris Albert, ou Maurício Alberto, fez esta canção no tempo da ditadura militar, no princípio dos anos 70, quando os principais artistas brasileiros ou foram presos e expulsos do país ou se auto-exilaram por conta própria, em protesto pela situação. Naquela época, a música em português quase desapareceu das rádios e os grupos e artistas adotavam nomes estrangeiros e passaram a cantar em inglês. Com a adoção da censura prévia, de parte do governo militar, muitas canções de gente como Chico Buarque e João Bosco, por exemplo, foram mutiladas e acabariam por se tornar conhecidas na rádio com a sua versão alterada. Os músicos que começaram a gravar em inglês confessaram décadas mais tarde que mudaram de idioma para não ter problemas com a censura. Quanto às letras das composições, como nem todos dominavam o inglês, eram citações de livros, instruções de algum manual de televisão, bulas de remédio, adaptadas à melodia da canção.

O amigo Serguei

Serguei, o poliglota

Num dia que nos deslocamos para visitar a cidade de Sochi, que hoje faz parte da Rússia mas já pertenceu à Georgia*, conhecemos Serguei, um russo com o qual mantivemos contato durante muitos anos, pois viajava frequentemente a Moscou. Marcos, Zau e eu tínhamos ido visitar a casa de Igor, um russo que estudava na Lumumba e, na altura, namorava uma brasileira que estudava história, a Madalena (uns meses depois, os dois casaram, tiveram um filho e, no final do curso, emigraram para o Brasil). Vínhamos os cinco, caminhando pela orla, quando Marcos começou a cantar uma canção qualquer, que não me lembro o nome, e alguém, à nossa frente, exclamou: “Esta canção é do Jorge Ben!”, para nosso grande espanto. Serguei era um russo formado em letras, com cerca de 40 anos, moreno e baixa estatura, que falava fluentemente várias línguas. A sua especialidade eram o inglês e o alemão, mas, por conta própria, estudara português e espanhol. Pela primeira vez na sua vida, tinha a oportunidade de utilizar a língua de Camões, confessou-nos mais tarde, e, o mais incrível, é que o fazia com bastante desenvoltura.

Apesar do curso superior, Serguei não trabalhava numa atividade compatível com as suas habilitações. Por razões políticas, foi afastado do instituto de línguas, em Sochi, onde trabalhou por alguns anos, e agora trabalhava como balconista numa livraria do estado. Para reforçar o orçamento, dava aulas particulares de inglês e alemão. Ao longo dos anos em que vivi na ex-URSS, sempre conheci pessoas como Serguei. As condições para o crescimento intelectual que o sistema de educação soviético e todos aqueles subsídios à cultura possibilitavam aos seus cidadãos não tinham paralelo em país nenhum do mundo ocidental, mesmo entre os países ricos. O próprio Ígor estudava alemão e japonês por conta própria e, em poucos meses de convívio com Madalena, falava melhor o português do que ela o russo. Isto sem falar nos grandes mestres russos de xadrez, nos pianistas, matemáticos e físicos, cujas façanhas sempre transpuseram a cortina de ferro.

Sérguei era o típico russo da intelligentsia clandestina, que fazia parte do universo dissidente, com bons contatos entre a elite de Moscou. Pouco mais de um mês de nos ter conhecido, aparece inesperadamente em Moscou, na residência da Lumumba, nos convidando para passar uma tarde com uns amigos seus moscovitas e conhecer o que era uma “russki stol”, traduzindo, uma “mesa russa”. Com Serguei, tivemos o nosso primeiro contacto com o verdadeiro mundo russo, a sua cultura, os seus hábitos, a forma como cultivam as amizades. Nas suas deslocações a Moscou, que eram frequentes, ficávamos a conhecer pessoas interessantes, amigos seus que eram jornalistas, professores, redatores, em encontros à volta da mesa sempre regados com vodka. Ao mesmo tempo, veio a frequentar também o nosso grupo de amigos da universidade, em visitas frequentes à Lumumba. Anos mais tarde, quando eu já estudava música e frequentava a residência estudantil do conservatório Tchaikovski, Serguei sempre aparecia para as festas e concertos que se realizavam. Perdi o contato com Serguei, com grande pena, depois que tirei umas férias acadêmicas de um ano para tentar arranjar trabalho na Europa Ocidental, em junho de 1988. Quando regressei, passados 15 meses, a minha vida nunca mais foi a mesma. Separei-me de Zau e me perdi nas noites doidas da residência estudantil DUUZI, onde viviam todos os estudantes dos institutos de música e teatro de Moscou e onde residi durante um ano antes de abandonar o curso e emigrar para Portugal. Espero que, um dia, ao ler este livro, Serguei, que não precisa de esperar pela tradução, venha a me contactar por e-mail.

Viagem ao Mar Negro

Próxima estação, Tuapsé

No dia 9 de julho de 1984, o grande contingente de estudantes da Lumumba que havia terminado a faculdade preparatória embarcava para uma temporada no sul da Rússia que iria durar até o final do mês. A casa de descanso em que fomos instalados se localizava na costa do mar Negro, entre as cidades de Tuapsé e Sochi, e era um dos milhares de estebelecimentos daquele tipo que haviam sido construídos na região para os trabalhadores soviéticos. Para um russo, conseguir uma estadia numa casa destas era muito difícil, pelo baixo preço dos serviços, que eram subsidiados pelo estado, o que fazia com que milhões de trabalhadores eram candidatos em potencial a uma vaga destas durante o verão. Os habitantes locais aproveitavam a temporada para alugar quartos e casas, num negócio clandestino tolerado pelas autoridades.

Quando chegamos ao local, o professor responsável pelos estudantes latinos resolveu tirar o corpo fora, na hora da distribuição dos quartos, argumentando que os responsáveis pelo sanatório não aceitariam colocar um casal numa só habitação sem uma certidão de casamento. Tentei argumentar que Mariano já o tinha avisado da situação, que Zau e eu vivíamos maritalmente há dois anos, mas ele me respondeu que Mariano tinha ficado em Moscou. Irritado, resolvi fincar pé e lhe prometi que não iria sair dali, do pátio em frente à portaria onde tínhamos nos acomodado com a bagagem, se não nos fosse atribuído um quarto de casal. O homenzinho continuou a sua tarefa, distribuindo as chaves aos alunos da Lumumba, a hora do almoço ia se aproximando e nós continuávamos ali. Zau ainda tentou me convencer a aceitar a situação, pois daquele jeito ainda ficaríamos sem quarto. “Que nos enviem de volta para Moscou”, disse-lhe, decidido a levar a parada até o fim. Depois de umas duas horas de espera, com o sol bem alto e a temperatura nos fazendo lembrar que estávamos no verão, quando restavam poucos estudantes para acomodar, o professor veio até cá fora e disse que a minha teimosia tinha surtido efeito. “Parabens pela sua determinação”, me disse ao entregar a chave de um quarto de casal.

A casa de descanso ficava a alguns quilómetros de Tuapsé, no alto de uma colina perto do mar, numa zona típica de pequenas enseadas e montanhas que caracterizam a região. Havia um grande refeitório central, que partilhávamos com os russos em férias em sessões de almoço ou jantar de meia hora cada, rigorosamente cronometradas. Espalhadas por recantos nos montes, cercadas de árvores frutíferas, estavam as habitações. Ladeada por ciprestes, uma longa escada dava acesso ao mar e, lá em baixo, finalmente, a praia. Para quem estava acostumado ao mar da Bahia, era uma verdadeira decepção. Naquela zona do Mar Negro, as praias não são de areia mas sim de pedras. Sem chinelos, não era possível andar pela praia e, muito menos, entrar na água. O pior foi quando, no terceiro ou quarto dia, as medusas tomaram conta do mar e não saíram mais de lá. Houve que não se incomodasse e continuasse com os mergulhos, mas eu não consegui entrar mais na água, pois tinha a sensação nada agradável de estar dentro de uma enorme panela de sopa de legumes.

O Mar Negro nem sempre foi um mar, pois, há 22 mil anos atrás, era apenas um lago de água doce. Há cerca de 7 a 9 mil anos, com o degelo das calotas polares*, o nível da água do Mediterrâneo subiu e atravessou o estreito de Bósforo, na Turquia, transformando o lago em mar, porém com um grau de salinidade menor que nos demais oceanos. Segundo os estudiosos, este acontecimento, transmitido de geração em geração, através dos séculos, estaria na gênese do mito de Noé e a sua arca.

Para os estudantes da Lumumba, estavam reservadas muitas atrações e passeios durante aquela temporada de verão. Em lanchas de passageiros super poderosas, que funcionavam com motores de avião, segundo nos disseram, fomos levados a conhecer muitos lugares daquela zona costeira do Mar Negro. Um dos passeios mais longos que fizenmos nos levou até a cidade de Novarossíski, onde tivemos oportunidade de conhecer um incrível memorial de guerra, relativo a uma grande batalha que se dera naquele lugar durante a 2ª Guerra Mundial. Em formato de “V” ao contrário, subindo por um lado e descendo pelo outro, pudemos apreciar um museu com artefatos bélicos, destroços do sangrento confronto, e placares com a cronologia dos acontecimentos. Os detalhes da batalha, aquelas peças todas, tendo como música ambiente um hino marcial, chegavam a causar um arrepio na espinha, ao imaginar aqueles trágicos acontecimentos. No topo da lista dos heróis, gravada em letras metálicas no concreto do monumento, estava o nome de Leonid Brejnev. Segundo soube depois, o então secretário-geral do PCUS terá hiperbolizado a sua participação na batalha de Novarossiski, o que não terá sido difícil para ele, um adepto e seguidor do sistema de culto à personalidade.

No regresso ao barco, me deu vontade de urinar, o que me fez conhecer o mais impressionante banheiro público de índole comunista que conheci até hoje. No caminho da praia, havia um pavilhão enorme, com uns 50 metros de comprimento, sem quaisquer vasos sanitários ou mictórios. De cada lado do banheiro, havia um imenso buraco que percorria toda a extensão da construção. Quem quisesse fazer as suas necessidades tinha, como companhia, centenas de pessoas que entravam e saíam. Sem se importar com nada disso, os russos baixavam as calças e acocoravam-se à borda do cagatório, uns ao lado dos outros.

Como é linda a Primavera

Como é linda a Primavera

Apesar dos incômodos causados pelo degelo inicial, com os passeios cheios de lama quando as temperaturas voltam a subir, a Primavera é um dos momentos mais bonitos que a natureza proporciona nos países de clima frio. Os brotos que despontam nos galhos das árvores crescem em grande velocidade, os pássaros regressam aos bosques, os dias são cada vez maiores e o sol nasce cada dia mais cedo. Quase que se pode notar o crescimento das folhas, dos arbustos, com o verde a tomar conta de tudo. Ao fim de três a quatro semanas, não se consegue imaginar que até há bem pouco tempo estava tudo coberto de neve.

Quando as temperaturas passam a ser positivas, temos uma sensação de leveza no corpo, ao nos libertamos dos casacos, gorros, cachecóis e ceroulas. As cores que o sol trás consigo, depois de quase seis meses de inverno, substituindo o cinza da paisagem, dão nova energia às pessoas, que passam a estar mais bem humoradas. Com pouca vontade de se estar trancado num quarto, mas com os exames à porta, a solução é procurar alguma relva ao sol, no bosque perto da universidade, para estudar. Por esta altura do ano, eu e Marcos recebemos ordem de transferência para o nosso quarto definitivo, no pavilhão sete. Zau iria morar no pavilhão nove, um edifício mais moderno, com doze andares e elevadores, reservado às mulheres e a alguns poucos casais.

Ao final do primeiro ano de faculdade preparatória, o único exame que se fazia era de língua russa. Nas outras matérias, havia apenas um teste sem qualquer nota. Zau, Marcos e eu, que éramos alunos aplicados, tiramos a nota máxima e nos preparamos para as primeiras férias na União Soviética. Ao final da preparatória, todo estudante estrangeiro na ex-URSS ganhava dois meses de férias em casas de descanso do estado. Todos os anos, os alunos da Lumumba rumavam, invariavelmente, no mês de julho, para o Mar Negro, e, em agosto, descansavam às margens do rio Dnepr, na antiga república soviética da Moldávia. Antes de partirmos, Mariano, que não iria nos acompanhar nestas férias, disse-me que estava tudo tratado, que não me preocupasse, que eu e Zau teríamos um quarto só para nós dois no Mar Negro. Grande Mariano. E que, na Moldávia, não seria possível fazer o mesmo arranjo porque só havia grandes dormitórios, para moças e rapazes, em separado, e, portanto, teríamos que nos desenrascar em qualquer lado, brincou.

Ida à sauna

Ida à sauna

A sauna é uma velha tradição russa e todos os balneários de Moscou são muito antigos, a maioria anteriores à revolução de 1917. Aquilo a que os russos chamam de bania é uma espécie de banho turco, com salas de banho construídas em madeira e o calor emanando de pedras em brasa, que vão sendo constantemente molhadas para aumentar a temperatura. Havia quem jogasse cerveja ou essência de ervas, tanto fazia, porque o objetivo de se jogar água sobre a fervura era controlar a humidade. Para os russos, ir ao bania é um momento de convívio sem distinção de classes, em que não faltam o vodka, o peixe defumado e os jornais desportivos para servir de mote à conversação. Com feixes de bétulas, batem uns nas costas dos outros para tirar as impurezas do corpo, às vezes em círculo, me fazendo lembrar os cangurus, que, por terem os braços curtos, fazem fila para coçarem as costas. Regra geral, os banias são uma coisa de homem na Rússia, com poucas saunas femininas. Havia umas poucas em Moscou em que alguns casais podiam alugar uma pequena camarata, o que permitia que algumas mulheres fossem à sauna mas em grupos, acompanhadas dos maridos. No centro de Moscou, haviam umas banias muito antigas, que eram utilizadas pela aristocracia antes da revolução, e que agora estavam à disposição de todos. Uma que frequentei anos mais tarde era muito bonita, toda em mármore, com grandes colunas gregas a rodear a imensa piscina fria, obrigatória antes de entrar na sala dos vapores. A elite soviética, porém, não frequentava estes lugares, apesar de serem vistos muitos generais em lugares destes. Quem tinha possibilidade de ter uma casa de campo, uma datcha, fazia uma sauna em casa, longe dos olhares alheios.

Estava meio engripado quando, num dia de inverno, fui ao bania pela primeira vez, sozinho, pois não havia encontrado companhia. O que nem foi preciso, pois, na fila de espera da sauna, Valôdia, um moscovita, meteu conversa comigo, dizendo que eu deveria ser da América Latina, por causa do meu cabelo comprido. Logo, formou-se um círculo e, enquanto esperávamos, fui submetido a um pequeno interrogatório pelos russos, que estavam curiosos de conhecer um estrangeiro e queriam saber coisas do outro lado da cortina de ferro. Ao entrarmos, nos deram uma toalha quase em farrapos, mil vezes usada e lavada, e nos dirigimos a balneários de duas pessoas, para deixar as roupas, cabendo-me Valôdia como parceiro, que estava gostando do papel de cicerone. Os russos são um povo muito simpático e afetuoso, com uns modos um tanto rudes, porém, sinceros. No bania, e também fora dele, os russos e os povos nórdicos em geral desfrutam de uma intimidade corporal que pode surpreender os mais desavisados. Para meu espanto, Valôdia me ensaboou as costas e depois passou-me o sabonete para que eu fizesse o mesmo com ele. Esta maneira de ser dos russos era algo que eu já notara com os meus colegas de corredor da residência da Lumumba. Às vezes, se reuniam no meu quarto e ficavam lá, aos montes, sentados na cama, conversando, uns sobre os outros. Quando o grandalhão do Sasha adoecia - e não foram poucas as vezes que ele ficou de cama, gripado e com febre - era tratado como uma criança pelos seus compatriotas, que lhe faziam chá bem quente, controlavam a medicação e a temperatura. Uma vez, entrei no quarto e estava lá um colega russo, sentado na cama e segurando a mão de Sasha, consolando-o pelo sofrimento da constipação, num vivo exemplo da solidariedade russa.

Olga, uma heróina brasileira

Olga, uma heróina brasileira

Nisto dos amores trágicos, a vida de Olga Benário Prestes, uma ex-militante da juventude comunista alemã, é das mais incríveis histórias que há notícia. Judia, alta e bonita, Olga foi uma revolucionária de verdade, tanto na teoria como na prática. Aos 17 anos, libertou o seu namorado, um professor que estava sendo julgado por subversão, apontando uma pistola à cabeça do juiz em pleno tribunal. Exilada em Moscou, foi encarregue pelo Komintern de Stálin de garantir a segurança do então famoso Luís Carlos Prestes, um herói internacional da esquerda, na sua trajetória rumo à conquista do poder no Brasil através de uma revolução armada.

Prestes e Olga assumem a identidade de Antônio e Maria Vilar e passam dois anos carimbando os passaportes falsos nos hotéis mais caros do mundo, viajando em cruzeiros, como se fosse um casal de milionários em lua-de-mel e assim despistar a polícia de temido Filinto Muller* ao entrar no Brasil. Na bagagem, levavam cem mil dólares, o famoso “ouro de Moscou”, para levar a cabo o seu intento. Ao mesmo tempo, vários casais de intelectuais europeus, revolucionários em seus países, partem em direção ao Brasil, todos clandestinos, para montar no Brasil um gabinete revolucionário. Haviam convencido Stálin de que o gigante sul-americano reunia condições semelhantes à da Rússia czarista e que só bastava acender o estopim para uma revolução de cariz semelhante.

A vida imita a arte quando Prestes e Olga se apaixonam de verdade no cumprimento da sua missão. No navio que os levou de Paris a Nova Iorque, a cama pequena do camarote propicia o envolvimento de dois heróis do movimento revolucionário mundial que nutrem uma grande afinidade mútua de idéias e ideais. O que ninguém sabia é que aquele capitão do exército brasileiro, aos 37 anos de idade, eternizado como o Cavaleiro da Esperança pelo romancista Jorge Amado, mundialmente famoso pela sua Coluna Prestes, chegava virgem ao leito conjugal. A revelação seria feita no sensacional livro do jornalista Fernando Moraes*, Olga, que João Prestes, o primogênito do segundo casamento, me deu para ler em Moscou, dizendo que era muito bom e que o que estava lá escrito era realmente tudo verdade. Ao ler ao livro, tive a impressão de que a verdade que o João Prestes falara talvez tivesse a ver com a sentença de morte proferida por um “tribunal vermelho”, de que seu pai fizera parte, a uma militante do partido que acabou por ser enforcada com a corda do varal.

O livro de Fernando Moraes é um verdadeiro épico, em que a grandeza dos personagens tem como cenário o maior conflito armado do século XX, com uma aura de romantismo que nem o célebre filme Casablanca conseguiu sequer chegar perto. O jornalista, que viria a se superar ainda com o “Chatô, o Rei do Brasil”*, narra em Olga a história de uma heroína moderna e pré-feminista ao mesmo tempo que faz um retrato fiel da força e organização do partido comunista alemão no início da década de 30 do século passado, da estrutura da Internacional Socialista da era stalinista e da malograda tentativa de se implantar uma república comunista no Brasil.

Olga é um livro emocionante e a protagonista, uma mulher incrível. Quando a polícia invadiu a casa em que Luís Carlos Prestes estava escondido, após o fracasso da chamada Intentona Comunista, em 1935, com ordens de matá-lo, foi Olga quem gritou com os policiais, saindo-lhes ao caminho, dizendo que não se atirava num homem desarmado. Aquela mulher alta, bem mais alta que o próprio marido, com a sua voz forte e corajosa, intimidou os invasores e impediu talvez ali a morte do lendário capitão. Olga mostrou valentia, não desgrudando do marido e teve que ir sentada no colo dele durante o trajeto até a delegacia.

Na prisão, Olga descobre que está grávida e que Getúlio Vargas* quer entregá-la às autoridades nazistas. Com sete meses de gravidez, embarca rumo a um campo de concentração na Alemanha de Hitler, onde daria à luz a uma menina exatamente um ano depois da revolução fracassada, na madrugada de 27 de novembro de 1936. Anita Leocádia Prestes, a primeira filha do capitão, foi resgatada pela avó paterna ainda antes do fim da guerra. Em fevereiro de 1942, pouco antes de completar 34 anos, Olga Benário Prestes morre numa câmara de gás em Bernburg, uma cidadezinha situada a 100 quilômetros a sudoeste de Berlin.

A primeira mulher de Luís Carlos Prestes é uma heroína genuinamente brasileira, que se queira quer não. Anos após a sua morte, Prestes recebeu a carta que Olga escrevera na véspera da sua morte, endereçada à filha e ao marido: “Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se envergonhar de mim”.

A Coluna Prestes

A Coluna Prestes

Luís Carlos Prestes começou a escrever o seu nome na história do Brasil em 1925 ao liderar um movimento armado que visava derrubar o poder das oligarquias que governavam o país, durante a chamada “Primeira República” ou “República Velha”. Apesar da república, a organização política naquele início de século XX remontava ao período anterior, em que os grandes latifundiários decidiam o futuro do país segundo os seus interesses de classe, num sistema baseado nos chamados “currais eleitorais”, com as lideranças políticas a controlarem o sentido do voto de milhões de trabalhadores rurais. Nas cidades, uma recente pequena e média burguesia começava a crescer. Militares, comerciantes, funcionários públicos e trabalhadores eram uma classe minoritária, mais bem informada e politizada, que, excluídos das decisões do poder, começaram a mostrar o seu descontentamento. Surge o movimento operário no Brasil, como todas as suas matizes, e, no seio dos militares, destaca-se o movimento da classe média das tropas do exército nacional, formado na sua maioria por oficiais de baixa patente, com a adesão e simpatia de sargentos, cabos e soldados, que seria conhecido como o “tenentismo”.

Na sua “grande marcha”, entre 1925 a 1927, Luís Carlos Prestes liderou 1500 homens e percorreu 13 estados do Brasil, enfrentando tropas regulares do exército brasileiro, sem sofrer nenhuma derrota no campo militar, granjeando respeito e fama de grande estrategista, com grande capacidade de liderança. A sua coluna era formada por contingentes gaúchos e paulistas que haviam participado em revoltas no ano anterior contra o governo de Arthur Bernardes*, e mantinham focos de resistência. Ao convencer os líderes da rebelião paulista que era possível derrubar o governo, Prestes inicia uma marcha, em abril de 1925, que começa no Paraguai, entra no Brasil pelo atual estado do Mato Grosso do Sul e percorre praticamente todos os estados da região nordeste, regressa a Minas Gerais, refaz parte do trajeto da ida e caminha em direção à Bolívia, onde chega em fevereiro de 1927. No combate a este foco de rebelião permanente, participaram muitos batalhões de jagunços, a soldo dos “coronéis” do nordeste brasileiro, e, suspeita-se, hoje, que até o cangaceiro Lampião* terá sido arregimentado para lutar contra a Coluna Prestes. Depois de mais de 25 mil quilômetros de marcha, Luis Carlos Prestes, líder de um invicto exército de cansados e famintos, decide exilar-se e entregar armas ao governo boliviano.

No seu percurso pelo interior do Brasil, a Coluna Prestes poucas vezes defrontou grandes efetivos do exército. As vitórias militares de Prestes basearam-se mais numa tática de guerrilha e despiste, com avanços e recuos, que ficou conhecida como “guerra de movimento”. Em suas investidas, a coluna liderada por Prestes tomava pequenas cidades do interior e organizava comícios em que se convocava a população a derrubar o governo de Washington Luís, que mantinha o país sob o estado de sítio desde que havia tomado posse, em novembro de 1926. Luís Carlos Prestes e o paulista Miguel Costa, os principais líderes da coluna, não conseguem depor o presidente mas granjeiam grande prestígio pela sua marcha vitoriosa. O movimento abre caminho para a única revolução da história brasileira, a Revolução de 30, e projeta a liderança de Luís Carlos Prestes, cuja fama galga as fronteiras nacionais. Emigrando com a mãe e as quatro irmãs em 1931 para Moscou, Prestes adere posteriormente ao Partido Comunista Brasileiro e lidera uma falhada tentativa de implantação de um regime comunista no Brasil em 1935. Até à sua morte, em 1991, aos 93 anos de idade, Luís Carlos Prestes seria sempre uma grande figura da vida pública brasileira.


* a chamada Revolução Tenentista foi deflagrada em 5 de julho de 1924, em São Paulo, liderada pelo general Isidoro Dias Lopes e o apoio do capitão Joaquim Távora e do major Miguel Costa, que viria a ser o outro grande nome da Coluna Prestes. Os objetivos do movimento eram reduzir o poder dos oligarcas, democratizando o processo político, com a adoção do voto secreto, e a modernização das forças armadas. A revolta foi sol de pouca dura e os resistentes marcharam ao Mato Grosso, comandados por Miguel Costa. No Rio Grande do Sul, os gaúchos tardaram em aderir ao movimento, concentrados que estavam na sua vida política local, divididos entre “chimangos”, oposicionistas liderados por Assis Brasil, e “maragatos”, partidários do oligarca Borges de Medeiros. Somente após o levante do 1º batalhão de Santo Ângelo, em 28 de outubro de 1924, idealizado por Prestes e o tenente Mário Portela, é que os revoltosos gaúchos e paulistas iriam se encontrar para dar início à Coluna Prestes.

O Cavaleiro da Esperança

O Cavaleiro da Esperança

Marcos e eu entramos em rota de colisão com alguns elementos do coletivo brasileiro desde o princípio da nossa estada na União Soviética, nomeadamente com os elementos ligados ao PCB, e chegamos a ter conhecimento que a nossa conduta tinha sido discutida em algumas instâncias do partido no Brasil. Ao contrário da imensa maioria dos estudantes brasileiros, tínhamos um passado de engajamento na luta contra a ditadura militar brasileira, que ainda vigorava naquela época, pelo que era-nos difícil acreditar nas maravilhas do estado soviético que eram apregoadas pelos estudantes ligados ao PCB e que de certa forma controlavam a associação estudantil. Marcos era filiado ao PCB na Bahia e eu militara no movimento estudantil na década de 70, chegando a colaborar com a Tendência Socialista de MDB, do deputado gaúcho Américo Copetti. As nossas diferenças com esta ala do coletivo brasileiro acentuaram-se nas assembleias que se realizavam periodicamente e que retratavam um pouco o cisma dentro do próprio partido comunista, que teve lugar quando Luís Carlos Prestes foi destituído do cargo de secretário-geral do PCB, em 1980, sendo substituído por Giocondo Dias.

Os membros do PCB em Moscou provavelmente receberam a missão de tentar catequizar os prepos brasileiros para o seu lado da barricada, pois condenavam abertamente o que consideravam uma traição de Luís Carlos Prestes. Mas como este ainda era um nome imaculado entre os soviéticos, tinham que amargar a presença e a influência que os filhos do mítico capitão tinham no coletivo brasileiro. Estes, por sua vez, apesar de educados na URSS, não abdicavam do convívio com os compatriotas, sendo que as filhas mulheres de Prestes eram todas casadas com estudantes brasileiros. Ao contrário do que os estudantes ligados ao PCB nos quiseram fazer crer nos contatos iniciais, os filhos de Prestes eram muito simpáticos e pessoas muito mais interessantes que a maioria dos brasileiros da Lumumba. Posso dizer que, com o passar dos anos, foram dos amigos brasileiros mais fiéis que Zau e eu tivemos, pois Marcos resolveu voltar para terminar o curso interrompido de jornalismo na universidade de Salvador, na Bahia.

Os secretários dos partidos comunistas estrangeiros eram considerados futuros chefes-de-estado na União Soviética e, enquanto permanecessem em território soviético, tinham regalias condizentes com o seu estatuto. Exilado em Moscou pela segunda vez em 1970, com a segunda mulher e os sete filhos pequenos, Luís Carlos Prestes possuía um apartamento numa das principais avenidas da capital, a avenida Gorki, situado a menos de 500 metros do Kremlin, com uma vista privilegiada para a Praça Vermelha. O apartamento era descomunalmente grande para os padrões soviéticos (e também para os brasileiros) e estava localizado num edifício habitado por figurões do regime, como militares de alta patente e políticos do 2º escalão. Igor, um russo casado com uma brasileira, não deixou de exprimir um oh! de espanto ao entrar no apartamento de Prestes pela primeira vez.

Nas suas deslocações a Moscou, Luís Carlos Prestes gostava de reunir os estudantes brasileiros no seu apartamento. Foi com alguma expectativa que comparecemos ao convite, Zau, Marcos e eu, de visitar Luís Carlos Prestes pela primeira vez, afinal, não é todos os dias que se encontra um vulto histórico do Brasil, que todos nós conhecíamos das narrativas dos livros de escola. Fomos recebidos por Mariana, a filha caçula do lendário capitão, que nos levou até a biblioteca, onde estava o seu pai, sentado à janela, com um livro entre mãos. Prestes levantou-se e veio nos cumprimentar. Nesse momento, me lembrei do que minha mãe dizia, quando eu era pequeno, que Prestes tinha sido um homem muito bonito, o que terá talvez contribuído para criar uma aura romântica de revolucionário ao seu redor. Ao contrário da imagem que eu criara no meu inconsciente, Prestes era um homem de baixa estatura, arqueado pelo peso da idade, porém com um ar sereno e um olhar profundo de quem já viu e passou por muita coisa.

Na sala do apartamento, estava já um grupo de estudantes brasileiros, que também tinham sido convidados. Prestes ainda demorou-se um pouco mais na biblioteca, talvez dando uma última lida nos apontamentos que tinha feito para a ocasião. O que eu pensava que seria um encontro informal, onde Luís Carlos Prestes iria contar algumas histórias, responder a perguntas, era na realidade um meeting político. No vigor dos seus 86 anos, extremamente lúcido, Prestes leu um discurso de quase três horas, cumprindo uma tradição dos líderes de esquerda, que gostam de fazer grandes intervenções, e onde previa uma revolução iminente no Brasil, pois estavam se reunindo todas as condições históricas para tal. Apesar do lado meio quixotesco da história, Prestes era um revolucionário que ainda acreditava nos seus ideais. Podia se discordar das suas posições, mas nem um pouco questionar o seu valor enquanto homem íntegro, que acreditou sempre na construção de um mundo mais justo.

Neve, suor e cerveja

O carnaval que o coletivo brasileiro realizava todos os anos na Lumumba, geralmente no mês de março, era a festa mais badalada da universidade e, provavelmente, de toda a União Soviética. Para os russos, o carnaval brasileiro é sinônimo de sensualidade e lascívia, onde corpos humanos são mostrados como vieram ao mundo, algo impensável no audio-visual soviético daqueles tempos, em que a pornografia era proibida. A violência no carnaval do Brasil também não era esquecida. Todos os anos, invariavelmente, a televisão soviética anunciava o número de mortos durante os quatro dias de festa, o que sempre era motivo de conversa entre os russos. Como a política cultural soviética e, por consequência, a da universidade Patrice Lumumba, era a de respeito e cultivo das tradições dos diferentes povos, o carnaval que os estudantes brasileiros organizavam era permitido dentro desta ótica, mas limitado ao espaço do clube universitário, com um sistema de convites que fazia daquela festa uma espécie de concorridíssima celebração tropical no gélido inverno moscovita. Cada estudante do coletivo brasileiro tinha direito a cerca de 15 convites e o restante era distribuído a várias entidades oficiais, entre estas a embaixada brasileira. O carnaval da Lumumba era o que acabava por nos ligar aos brasileiros do corpo diplomático e, de alguma forma, oficializava a nossa presença na ex-URSS. Para o governo brasileiro da altura, nós éramos subversivos e colaboracionistas pró-soviéticos. Para os funcionários da embaixada e do consulado, este pormenor não fazia a menor diferença e o que eles queriam mesmo era se divertir. Eu imagino que a vida deles devia ser bem monótona, longe do Brasil, com poucos afazeres no serviço, bons rendimentos e raras opções de diversão. Por isso é que eles esperavam ansiosamente pelo carnaval e os convites que lhes eram oferecidos deviam ser algo de grande disputa interna.

O Interclub, o clube da universidade era engalanado a preceito, numa tarefa em que se envolviam os brasileiros e alguns amigos uruguaios, que não estudavam na universidade. Durante o ano letivo, os brasileiros eram constantemente assediados pelos estudantes de outros países, que sonhavam em poder ter acesso ao carnaval. No dia da festa, a polícia era chamada para fazer a segurança e eram colocados gradeamentos para controlar o acesso ao local. Parecia a entrega dos Óscares, com a multidão a aglomerar-se para ver a chegada dos convidados, devidamente caracterizados para o efeito.

Morre Andropov


Numa manhã de fevereiro de 1984, a rádio começa a emitir somente música clássica e marchas fúnebres. O russo Sasha entra pelo quarto, com um ar entristecido, e comunica que Iuri Andropov havia morrido. “Era um bom camarada”, lamenta, na sua ingenuidade. A expectativa agora era, no entanto, saber quem o iria substituir. Estes momentos de passagem de poder no Kremlin eram envoltos em um véu de mistério parecido com a escolha do papa da igreja católica. Os dignatários da ex-União Soviética eram escolhidos por um colégio de eleitos e os seus cargos também eram vitalícios. Nos funerais de estado que era transmitidos em direto pela televisão, o novo secretário-geral do PCUS tinha a honra de segurar a primeira alça direita do caixão. A escolha do Politburo soviético recaiu em Konstantin Tchernenko, um homem da velha guarda de Brejnev, que assumiu o cargo em condições precárias de saúde. Analistas e historiadores crêem hoje que já se desenhava a luta interna pelo poder, entre a velha guarda e os renovadores no Comitê Central do PCUS, e que a escolha de Tchernenko serviu para dar um tempo enquanto a refrega fosse decidida. Konstantin Tchernenko fez duas rápidas aparições públicas, sempre amparado por seguranças, e morreu menos de um ano depois de ter tomado posse. À boca pequena, comentava-se que Tchernenko deveria estar tão doente e debilitado que nem deveria estar se apercebendo do que estava a acontecer.

Rebeldia com causa

Após as férias de inverno, Ivan, que pertencia à direção da associação dos estudantes brasileiros, me convidou a participar num festival de música que a universidade iria realizar. O festival era aberto a estudantes de toda a União Soviética e tinha um pormenor que me fez recusar a proposta. Era um festival da canção política. Ivan insistiu com a idéia e sugeriu que eu escolhesse as canções que ele tratava do resto. Afinal, eu cantaria em português e os soviéticos não iriam entender nada. Além do mais, havia muito tempo que a colônia brasileira não participava de um festival assim, pelo que o brasileiro ficou todo contente.

Quando cheguei em Moscou, eu tocava algumas canções no violão e pouco mais. Quando pequeno, cantei em programas de televisão, por iniciativa da minha mãe, mas lá em casa não havia espaço para a música por causa do meu pai, oficial da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Só pude comprar um instrumento depois que saí de casa e comecei a trabalhar na revisão do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Sabia tocar algumas músicas do cearense Ednardo (aquele do Pavão Misterioso) e outras que o amigo Nei Lisboa me ensinara. Numa primeira festa que se organizou na faculdade preparatória, fui literalmente convocado a participar, pois, já que trazia um violão comigo e sabia tocar, então não havia como fugir. Cantei duas músicas do Neizinho e fiquei popular entre os estudantes da preparatória. Sem que eu soubesse, o responsável pelo jornal da universidade estava presente na sala e destacou a minha apresentação na primeira página da edição seguinte.

Um panamenho que tocava bongô conhecia um pianista tcheco que estudava num instituto de línguas perto da universidade e formamos um grupo para o festival. Seriam dois dias de eliminatórias e uma gala no sábado que iria contar com um representante do comitê central do PCUS. Esvaziamos uma garrafa de conhaque no banheiro e antes de entrar no palco eu coloquei uma boina preta na cabeça e uns óculos escuros. Com a barba e o cabelo comprido, parecia que o Che Guevara tinha ressuscitado e iria agora participar com o seu violão num festival para invisuais. Quando entramos no palco, a reação da plateia foi de estupefacção, pois certamente não estava à espera de tal ousadia. Havia ensaiado o nome da primeira canção em russo e disparei ao microfone: “pra viajar no cosmos não precisa gasolina”, o que provocou o delírio dos estudantes latinos, que começaram a gritar. Foi preciso esperar que se acalmassem para que pudéssemos começar a tocar. Entretanto, começo a notar algum nervosismo e troca de olhares entre os responsáveis da universidade que estavam na primeira fila e faziam parte do júri. Antes de eu começar a cantar a canção propriamente propriamente dita, o checo tocava uma introdução que era parte de uma composição que ele estava fazendo, e que era meio pesada e sorumbática. Aquilo durou uns minutos e eu percebia que a movimentação entre os soviéticos aumentava. Talvez sentissem aquilo tudo como uma provocação. Que porra de canção política era aquela? Quando terminamos, a casa veio abaixo. Os latinos entraram em histeria. Pulavam, gritavam, extravasando uma alegria contida, armazenada talvez há muitos anos. Faltava tocar a segunda canção, mas o povo não se calava. O apresentador pedia silêncio mas ninguém queria ouvir. Foi preciso esperar quase cinco minutos para recomeçar. O presidente do clube da universidade, responsável pela organização do festival e muito provavelmente um agente do KGB, gesticulava e dava a entender que gostaria de saber o que se passava ali. Quem teria deixado passar uma coisa daquelas? Quem era o responsável? Lá tocamos a segunda canção - a minha primeira composição, tipo blues - que terminava com um falsete. Nem terminamos de tocar e a multidão já se levantava de novo. Algo os havia despertado e aquele trio parecia ter sido o estopim para uma explosão de alegria há muito adormecida. Saímos rapidamente do palco, enquanto ouvíamos a plateia a gritar, a exigir a nossa presença. O apresentador de serviço estava quase a conseguir levar a sua missão ao destino quando regressamos ao auditório onde estava Zau e o nosso grupo de amigos. Quando o público nos viu entrar por uma porta lateral, a gritaria recomeçou. Continuamos a ser ovacionados ainda por alguns minutos, o povo levantou todo, os estudantes queriam nos cumprimentar, nos tocar, dizer que tinha sido verdadeiramente revolucionária a nossa prestação.

Tanta receptividade do público presente no festival não encontrou eco no corpo de jurados. O festival tinha um formato que não premiava um vencedor específico, apenas selecionava os participantes para a gala final, que seria transmitida em direto pela televisão estatal. E é claro que os responsáveis políticos não estavam nem um pouco dispostos a deixar que aquele trio incendiário se apresentasse perante o país inteiro. O resultado não podia ser outro, fomos desclassificados. No meio do público, começaram a surgir algumas vozes de indignação. Alguns latinos mais exaltados gritavam, xingavam nomes aos soviéticos até que um músico russo, participante do festival, pediu a palavra para falar. Elemento de um grupo conhecido em toda a União Soviética, defendeu-nos e criticou a organização do festival. O meu russo ainda era meio claudicante, mas o brasileiro Ivan ia traduzindo tudo. O homenzinho foi realmente corajoso, pois eu próprio achava que não valia à pena tanta confusão. Mas o russo continuava. Chegou mesmo a ser grosseiro com a organização e até hoje me pergunto se ele continuou a fazer o que fazia até então e não terá sido deportado para a Sibéria.

A música sempre foi sempre algo de especial para mim. Os festivais da TV Record marcaram a minha infância profundamente. Sempre gostei de cantar e, quando comecei a tocar os primeiros acordes no violão, eu só queria saber de interpretar algumas músicas para poder brilhar em festas e acampamentos e, é claro, conseguir umas meninas. Só que a participação no festival foi uma emoção muito forte e inesperada, que quase não me deixou dormir naquela noite. Resolvi que iria tentar mudar de curso e estudar música. Me disseram que era um processo muito difícil mas nada impossível. Havia casos de estudantes que conseguiram sair da Lumumba mas tinha que se ter o aval do partido comunista, no meu caso, o brasileiro. Fui com Humberto, presidente do coletivo brasileiro, falar com a responsável pelos estrangeiros, a temível Ala Mitrofânovna, secretária da reitoria da universidade. Surpreendentemente muito simpática, disse-me que eu cantava muito bem e informou-nos que era necessário apenas escrever uma “zaiavlênie” (uma declaração, em russo) e endereçá-la ao reitor. E, obviamente, que não faltasse o selo do PCB. Merda, pensei eu. A tal da “zaiavlênie” representava, na altura, a burocracia por excelência do estado soviético. Para tudo era preciso escrever uma: o papel iria circular de gabinete em gabinete até parar à secretária de algum burocrata e ali ficar, provavelmente alguns anos, à espera de uma resposta. Dei para mim o prazo de dois anos, para tentar aprender a língua e, se não conseguisse a transferência, o que era o mais provável, regressava à casa. Pois estava enganado. Passados um ano e alguns meses, a resposta foi positiva. O brasileiro Ivan, que era ainda o terceiro elemento da troika do PCB em Moscou, garantiu a aprovação partidária para o meu intento e foi quem me ajudou a encontrar uma escola de música quando eu abandonei a universidade.