Prédio principal da Patrice Lumumba
A Universidade Patrice Lumumba era patrocinada pelos sindicatos soviéticos e havia sido criada em 1961 com o objetivo de ajudar os países do então chamado terceiro mundo. No auge da guerra fria, foi pensada, talvez de maneira algo ingênua, como um instrumento de propaganda, em que estudantes de países pobres teriam acesso ao ensino universitário e depois iriam contar maravilhas sobre a União Soviética, que tinha lhes proporcionado um diploma. Para um soviético, estudar na Universidade Patrice Lumumba não era lá muito prestigiante porque o nível de ensino era extremamente baixo. A principal universidade de Moscou é a Lomonossov, a maior do mundo, e onde as exigências de ingresso são outras. Para estudar na Lumumba, não era preciso fazer prova alguma de acesso. O único teste a que me submeti foram algumas equações matemáticas e químicas antes do início das aulas para verificar o meu grau de aprendizado. Quem tivesse uma má prestação nas ciências exatas fatalmente seria transferido para um curso nas áreas humanas, pois seria muito dispendioso para a universidade enviar estudantes de volta para casa. No segundo semestre da preparatória, eu fui colega de uma estudante da Nigéria que não falava nenhuma língua a não ser o seu dialeto natal. Ela estava simplesmente sendo alfabetizada na sala de aula da Lumumba, em russo, utilizando pela primeira vez na vida uma caneta. A professora que tive no segundo semestre foi quem descobriu em plena aula, verificando que ela falava um dialeto que era uma mistura de inglês, holandês e a língua dos seus antepassados. Mas o que fazer com ela? Já que não podia ser médica ou engenheira, então estudaria russo e seria professora. Com apenas o curso superior no seu currículo acadêmico.
Nos países de origem, os estudantes eram recrutados a maior parte através dos partidos comunistas locais. Havia também quem fosse estudar pelas Casas de Amizade pró-soviéticas que existiam espalhadas pelo mundo e também gente ligada a movimentos armados, como os sandinistas nicaraguenses ou os guerrilheiros palestinos. É curioso que os partidos comunistas não enviassem para estudar na ex-URSS seus elementos importantes, e sim simpatizantes, na sua maioria, ou apenas militantes com pouca expressão na estrutura partidária. Esta mistura de latinos, árabes e africanos criava um clima estranho nos corredores da universidade. As fotos do Che Guevara, as bandeiras dos movimentos de libertação dos vários países, estudantes com idade de quem já não devia estar num banco universitário, tudo isto nos dava a impressão de que aquele era um lugar pejado de revolucionários, prontos para derrubar todas as tiranias do ocidente capitalista. Que nada, a grande maioria dos alunos era de origem humilde, de países pobres, e estava lá porque aquela era uma oportunidade de se obter um diploma universitário. Muitos eram pessoas que ali iam parar e não se adaptavam. Ex-guerrilheiros cheios de traumas, simpatizantes da causa na meia-idade sem cabeça para os estudos, que demoravam a passar de ano, trocavam de curso, em busca de algo mais fácil, numa estadia na ex-URSS que se podia prolongar indefinidamente.
A Patrice Lumumba não era um centro de treinamento de guerrilheiros, como muita gente pensava. Esse papel no mundo já não pertencia aos soviéticos e sim aos cubanos. Mas é verdade que pelos seus corredores circulava muita gente estranha, sobretudo de proveniência árabe. Há uma história curiosa sobre aquele que terá sido o mais famoso ex-aluno da universidade, tendo passado por Moscou em finais dos anos 60. Filho de um alto dirigente do partido comunista venezuelano, (o nome dele), pediu aos soviéticos que lhe dessem treinamento militar, o que foi negado, evidentemente. Segundo consta, foi aí que se envolveu com estudantes ligados ao grupo do terrorista Abu Nidal e desapareceu do país. Começava a carreira de um dos terroristas maiores do século XX, o Chacal.
Poderá haver quem pergunte como conseguiu o Chacal deixar a União Soviética, que tinha um sistema de vistos muito apertado, ainda mais que um estudante só conseguia um visto de viagem se encaminhasse o pedido à reitoria da universidade. O que sei é que eu também tive uma colega venezuelana que casou com um estudante da Jordânia e saiu do país sem autorização. Fomos colegas ainda na preparatória, no segundo semestre, quando mudei de professor e fiquei sem Vassili, indo parar a uma outra sala de aula. A venezuelana tinha se apaixonado pelo árabe e um dia contou na aula que iria deixar os estudos e viajar para a pátria do amado. A professora, uma russa que havia morado dois anos em Londres, tentou demover-lhe da idéia, dizendo que casar com um muçulmano significava perder a liberdade. A menina estava decidida e um belo dia sumiu e nunca mais foi vista, nem ela nem o namorado.
Apesar do baixo salário dos professores universitários, dar aulas no ensino superior tinha as suas compensações. É que geralmente todo professor passava dois anos em um país estrangeiro para aprender uma língua. Este destino estava traçado desde a infância, quando era-lhe imposto um idioma, que podia ser o árabe ou o espanhol. O estado financiava a educação e, neste ponto, os soviéticos não perdiam para os seus inimigos ocidentais, a não ser em luxo e riqueza. Os livros eram fornecidos pela biblioteca da universidade, ou custavam muito pouco nas lojas estatais; as refeições na cantina eram baratíssimas e a qualidade da comida infinitamente superior à de um restaurante popular; os estudantes não pagavam casa, luz ou água, e tinham os lençóis trocados duas vezes por mês.
O sistema era todo muito rígido e havia uma disciplina dentro das salas de aula à moda antiga. Os alunos levantavam-se quando o professor entrava em aula. Para não ter que fazer o mesmo, Marcos e eu decidimos que só entraríamos na aula depois do professor. Era o nosso orgulho Lrevolucionário que vinha à tona nessas horas. Dava às vezes uma grande vontade de confrontação. No Brasil, tanto Marcos como eu tivéramos uma militância de esquerda nos anos 70, com o registro mais que óbvio nos ficheiros da polícia secreta do regime militar instaurado pelo golpe de 64. Enquanto estrangeiros, achávamos que o máximo que poderia acontecer era nos enviarem de volta para casa. Por outro lado, os estudantes soviéticos é quem mais sofriam com o autoritarismo de certos professores e muitas vezes eram humilhados. Teoricamente, para os soviéticos, a Lumumba poderia servir de trampolim para quem fosse do partido, num meio em que havia muitos estrangeiros e muitas solenidades e discursos.
Se entre os soviéticos a Lumumba não gozava de grande prestígio, entre os moscovitas era alvo de chacota. Os estudantes africanos da Lumumba foram provavelmente os primeiros negros a pisar o solo russo, pelo menos depois da revolução de 1917. Chamam-lhe jocosamente “lumumbarium” ou ainda “planeta dos macacos”, em alusão ao famoso filme dos anos 60 protagonizado por XXXXX e que teve uma versão há poucos anos realizada pelo Tim Burton. Hoje em dia, a situação é insustentável para minoria negra no país, pois continuam a estudar estudantes de origem africana. Há também uma nova geração de renegados que são os filhos dos estudantes negros com as russas, crianças mestiças discriminadas por uma crescente onda de xenofobia. Me recordo que já naquela altura havia grupos de moscovitas que reuniam-se para bater em estudantes estrangeiros nas redondezas da universidade.
Para mim, esta fauna internacional da Lumumba era um universo novo, uma espécie de tubo de ensaio da convivência intercultural entre povos do hemisfério sul, os países pobres. Procurei desde o princípio travar conhecimento com todo o tipo de gente, à revelia de um certo padrão estabelecido de que latinos, africanos e árabes não se misturavam. Havia um racismo latente, que fazia com que peruanos ou bolivianos de origem indígena, os cholos, utilizassem termos ofensivos quando se referiam aos africanos. De certa forma, os brasileiros eram o povo mais colorido de todos, terra do rei Pelé, e não sofríamos tanto esta pressão. Pela proximidade da língua, tanto os africanos de língua oficial portuguesa como os latino-americanos pertenciam ao universo em que circulavam os brasileiros, uma minoria na universidade. Este choque de culturas provocava momentos divertidos, por vezes. Havia um equatoriano, chamado Gorki, que tinha dois irmãos, o Lênin e a Maria Krupskaia*. Um dia, após o banho, quando passava talco no corpo, uns afegães que viviam com ele se interrogaram sobre tão misterioso pó, ao que o equatoriano explicou para que servia. No outro dia, quando chegou das aulas e entrou no quarto, deparou-se com uma nuvem branca. Vários afegães haviam voltado do duche (eles gostam de fazer estas coisas em grupo) e agora estava-se na hora da colocação do talco, o que, para eles, era a última novidade. Quando avistaram Gorki, um deles ofereceu o talco, explicando que haviam comprado muito e que havia para todos. Gorki olha para cima da mesa e mal consegue conter o riso quando se dá conta que os afegães tinham comprado um quilo de farinha de trigo.
Os chilenos eram um grupo que se destacavam entre os estudantes da universidade, tanto pela quantidade como pela sua história. Eram exilados do regime ditatorial do general Pinochet, um dos mais sangrentos do século XX. Para a sua segurança, cada um adotava um nome fictício e nem os próprios chilenos sabiam o nome um do outro. Tinham uma vivência muito coletiva, andavam sempre em grupos e tinham, com algumas exceções, um baixo aproveitamento escolar. Talvez pelo fato de que muitos haviam perdido os familiares nas mãos dos militares, aos chilenos era permitida uma certa indolência no cumprimento dos suas tarefas escolares. Pablo, o chileno que viera conosco no avião, repetiu a preparatória e andou muito tempo na Lumumba sem conseguir passar do primeiro ano, até que o enviaram para estudar em Kiev, numa tentativa algo desesperada de fazer com que ele conseguisse estudar. De toda a América Latina, somente uruguaios e argentinos não estudavam na Lumumba. Segundo me disseram, as organizações destes países tinham algum acordo com o estado soviético e os seus estudantes eram matriculados em outras instituições de ensino.
Os estudantes africanos dividiam-se entres os de língua portuguesa, inglesa e francesa. Os que falavam português, provenientes de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe, eram muito simpáticos e afetuosos para com os brasileiros. Eles se consideram como nossos irmãos, por termos sido todos colônias portuguesas, e acham que o Brasil é uma África que deu certo. A falecida cantora Clara Nunes é muito conhecida nestes países pela sua gravação da canção “Morena de Angola”, do Chico Buarque, assim como muitos outros artistas brasileiros. O pessoal do coletivo brasileiro nos avisou de que os angolanos tinham uma maneira muito peculiar de demonstrar as suas emoções e que não nos assustássemos se eles nos pegassem na mão, enquanto conversavam ou passeassem ao nosso lado, pois era uma simples demonstração de afeto. Eu tive dois colegas do Mali que eram muito divertidos. Um deles era irmão de um diplomata em França e tinha uma educação acima da média. O outro tinha o corpo coberto de tatuagens, que identificavam a tribo à qual pertencia. Este último, Dúmbia, era alto e forte e metia medo aos professores pelo seu jeito brusco. Numa aula de história, ainda na preparatória, o professor estava a falar da Revolução de 1917 na Rússia e Dúmbia queria explicar o seu conceito de socialismo. Como este não lhe deu atenção, ele resolveu levantar-se e ir ao quadro para explicar. O professor não teve meias medidas e saiu correndo da sala, para espanto de todos, que conhecíamos o Dúmbia e sabíamos que era incapaz de fazer mal a uma mosca.
Ao lado do quarto de Zau, no tempo em que estivemos sozinhos, vivia um grupo de estudantes do Afeganistão. Por causa deles e de mais duas afegãs, que viviam no mesmo corredor, o movimento de afegães era enorme e passamos a conviver com eles e a conhecer várias caras do coletivo afegão, o pessoal do partido, que aparecia por lá, assim como nós recebíamos visitas dos nossos ideólogos. Os muçulmanos são diferentes de nós no que refere ao contato corporal. Enquanto homem e mulher nunca se tocam, a não ser em privado, os homens, entre eles, como diria um amigo meu, “parecem um bando de maricas”. Os homens são carinhosos uns com os outros, dão beijos no rosto, demorados e barulhentos, e quando fazem uma festa, convidam só homens e dançam todos entre eles. Ao contrário dos cinco rapazes vizinhos de Zau, que eram de origem humilde, as duas afegãs eram ricas e belíssimas. Vestiam-se à ocidental, mas de maneira mais clássica. Com a mais bonita delas, tive um pequeno flerte, que acabou porque eu só podia visitá-la em seu quarto se lá estivessem elementos afegães do sexo masculino. Não era por vontade delas, mas sim porque havia um grande controle dos homens muçulmanos sobre as mulheres do seu país. O interessante da história é que foi a estudante afegã a tomar a iniciativa em me conhecer e convidar para um chá em seu quarto. Para aquela afegã, que me fazia recordar a princesa Soraia (que virou ex-princesa porque não conseguiu dar um filho ao xá do Irão), eu era uma fantasia ocidental que ela nunca tinha visto ao vivo. É que cheguei em Moscou com uma grande cabeleira, com a tez bronzeada de dois anos de sol na Bahia e um visual hippie que eu só iria abandonar anos depois. O meu cabelo comprido e encaracolado, verdade seja dita, abriu muitas portas na antiga União Soviética, país em que os jovens não podiam deixar crescer os cabelos. Em Moscou, só quem usava cabelo comprido na rua eram os estrangeiros, uma elite numa população acostumada aos rigores do comunismo.
Quando fui expulso do quarto onde vivia com Zau, regressei à convivência de Marcos e do russo Sasha, no andar térreo. Como Marcos e o nosso camarada não se importavam, Zau passou a viver conosco no quarto. Um dia, nos informaram que um outro estudante iria nos fazer companhia. Era um jovem sudanês, negro e sempre vestido com uma mortalha branca. Construí um beliche em cima da cama de Marcos e lá vivíamos os cinco na nossa pequena comunidade. O rapaz do Sudão era muito engraçado, inteligente e se desenvencilhava muito bem com o russo. Tinha uma namorada que ele escondia dos seus compatriotas dizendo que era sua irmã. Desta forma, ele podia estar com ela a sós ou passear longe dos olhares alheios. Durante o dia, ele passava o tempo com ele, pelo que sempre tínhamos o quarto cheio. Apesar da força da religião, era uma pessoa como nós, com a sua cultura diferente, é claro, mas resolvendo de uma maneira muito pragmática o mesmo problema que enfrentam os católicos praticantes que fazem sexo antes do casamento.
Nos dias de hoje, os muçulmanos em geral, com exceção de algumas monarquias que gostam de aparecer nas revistas de moda, tem regras muito definidas sobre o papel do homem e da mulher na sociedade. Na universidade, os estudantes dos países árabes eram muito machistas e, para eles, havia dois tipos de mulheres, as puras e as impuras. Se a estudante fosse casada, porém, havia um respeito quase sagrado e eles nem se atreviam a olhar. Uma vez, convidei os cinco afegãos para tomar chá no quarto em que vivia com Zau. Eles foram se preparar enquanto coloquei um vasilhame com água no fogão da cozinha, que ficava ao fundo do corredor. Estávamos sentados a conversar quando me levanto para ir buscar a água, que já devia ter fervido, e saio do quarto quando me dou conta que os cinco saíram atrás de mim. Como Zau era a minha mulher, eles não se atreviam a ficar a sós com ela numa mesma habitação. É verdade que eles gostavam muito de seduzir as estudantes de países da América Latina, mas uma vez oficializada a relação, eles exigiam uma conduta segundo os procedimentos da sua religião.
* Maxim Gorki, poeta oficial do regime, que escreveu o panfletário “Mãe” e acabou por se desiludir com o regime quando Stalin acabou com as suas viagens aos exterior. Maria Krupskaia, em homenagem a Nadejda Krupskaia, esposa de Vladimir Ilitcht Ulianov, o Lênin, pai da Revolução de Outubro. Entre os latino-americanos, na Lumumba, havia muitos que haviam sido batizados segundo o fervor revolucionário dos progenitores. Vladimir ocupava o topo da lista dos nomes utilizados, até por ser mais discreto, enquanto outros nomes eram novas criações, um fenômeno ao que parece latino-americano, como o do venezuelano Clênin, cujo pai era comunista de carteirinha.
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