Friday, November 04, 2005

A primeira noite na URSS

Até hoje, quando escuto o hino da ex-URSS, lembro-me dos primeiros tempos em Moscou. Anos mais tarde, consegui comprar o disco, da editora Melódia, uma raridade no mercado moscovita de discos em vinil, mas dei-o de presente ao Humberto Gessinger, dos Engenheiros do Hawaii, quando eles estiveram por lá, já nos tempos da Perestroika, e nunca voltei a encontrá-lo. A música é linda, tanto que os russos, anos após a queda do império, resgataram o hino mas com uma letra diferente, tirando as referências à revolução e ao seu progenitor, Vladimir Ilitcht Ulianov, o Lênin.
Após uns vinte minutos à espera no saguão da residência, chegou um russo alto e forte e anunciou que eu e Marcos iríamos para o seu quarto. Quanto à Zau e à Marli, havia outro para elas no quarto andar. Seguimos o russo ao porão do edifício para buscar as nossas camas e colocá-las no nosso quarto, que seria o de nº 168, no térreo, bem ao fundo do corredor do lado esquerdo do prédio. O “nosso” russo - era o primeiro que conhecera e seria nosso parceiro de quarto - era o responsável pelo andar, uma coisa da juventude comunista na organização da residência. Depois, fomos buscar os cobertores, lençóis e travesseiros, acompanhados pela “chefe” da residência, uma russa gorda, vestida com um casaco preto que era o traje típico de inverno do trabalhador soviético.
Instalados, fomos procurar Zau e Marli, que estavam no 467. Lá, conhecemos outras três brasileiras que haviam chegado há mais tempo, no início das aulas. Nós éramos os últimos a chegar, com um mês de atraso (ao todo, éramos sete os novos brasileiros naquele ano na universidade. As aulas já havia começado e tínhamos que correr para poder entrar no ritmo das aulas). Entre uma xícara e outra de chá, um velho costume nos países do Leste Europeu e Ásia, apareceram mais uns três ou quatro compatriotas, para conhecer os “prepos” (da faculdade preparatória), e ficamos a conversar. Aliás, seria assim durante todos os primeiros dias no continente vermelho. Quase todos os brasileiros que viviam em Moscou apareceram para nos nossos quartos. Mais tarde, percebi que essas visitas não eram de todo inocentes. Mas naquele dia a coisa foi simpática. Todos nos tratavam com uma certa euforia, para que nos sentíssemos bem naqueles primeiros tempos.
Aos poucos, viemos a saber que o “coletivo” brasileiro - era assim que chamavam - era dividido entre o pessoal que rondava à volta da célula do PCP em Moscou e aqueles que frequentavam o reduto da família de Luís Carlos Prestes, então ex-líder histórico do Partico Comunista Brasileiro, o “Partidão”, mas que era ainda tratado pelos comunistas soviéticos como um verdadeiro chefe-de-estado. Os brasileiros apareciam para nos sondar. Para auscultar o que pensávamos. Mas Zau, Marcos e eu, que tínhamos as nossas conversas à parte, resolvemos logo deixar bem claro a nossa posição. Não éramos contra o comunismo - Marcos até era membro do PCP na Bahia, mas na Bahia o PCP é outra história - mas não alinhávamos com o modelo soviético. Esta nossa atitude acabou por nos separar um pouco da turma brasileira (o que foi bom), até porque eu não estava lá para falar a minha própria língua e sim aprender russo.
Cerca das onze da noite, resolvemos deixar as meninas (pela primeira vez Zau e eu dormiríamos separados, desde que nos conhecemos) e fomos para o nosso quarto. Como não havia despertador, a única solução era deixar o rádio ligado, um pequeno aparelho com uma frequência só e que ligava a uma tomada na parede. Transmitia a Rádio Moscou e não havia alternativas. Todos os dias, a emissão encerrava à meia-noite com o hino da ex-URSS numa versão instrumental. Às seis da manhã, novamente aquela música, noutra gravação, com um coro a entoar palavras que eu ainda não conhecia. Naquela noite, depois de ouvir o hino pela primeira vez, no silêncio do quarto, pensei comigo: “é a primeira vez que vou dormir quase do outro lado do planeta”. Um frio me percorreu a espinha. Será que era aquilo mesmo que eu queria? Estar num lugar totalmente diferente do que eu imaginara, numa espécie de reformatório para refugiados do terceiro mundo, sentindo-me vigiado? Aquele russo alto e forte - Sasha, diminutivo de Alexandre em russo -, que dormia ali ao lado, bem podia ser um espião. Ou, no mínimo, um camarada pronto para nos ensinar o caminho certo.

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