Friday, November 04, 2005

SAÍDA CLANDESTINA DO BRASIL

A nossa ida para a URSS era algo complicada. Apesar da abertura nos finais do governo do presidente João Figueiredo, o país ainda vivia sob um regime militar. Só o fato de mencionar que iríamos estudar em Moscou assustava as pessoas. A minha mãe, quando soube, a primeira coisa que fez foi perguntar se eles, os russos, me deixariam sair depois de terminar os estudos. Por isso o nosso abandono do país ocorreu de maneira algo sigilosa. Só contamos a verdade à família e amigos mais próximos. Numa viagem terrível de três dias em ônibus, deixamos a Bahia com destino a Porto Alegre, onde ficamos uma semana e esperamos por Marcos, que connosco empreenderia a viajem até Buenos Aires, local do nosso voo. Como a companhia soviética de aviação, a Aeroflot, não operava no Brasil, a única hipótese era a vizinha argentina.
Na embaixada soviética, onde fomos retirar o visto que nos esperava, sucedeu-se o nosso primeiro esbarrão com a lógica burocrática que fazia do cidadão comum soviético um ser inferior em relação aos funcionários dos balcões de atendimento ao público. A mulher que nos recebeu, uma russa gorda de meia idade, ao verificar que não tínhamos trazido caneta para preencher o formulário, lascou de imediato, em espanhol com forte acento: - “Vocês vão estudar e não trazem caneta”? Foi um verdadeiro balde de água fria no nosso entusiasmo e uma pequena amostra do que nos esperava. Dentro de pouco, iríamos estudar numa das sociedades mais fechadas que o homem já concebeu. Foi neste momento em que pressenti que eu finalmente ia conhecer o Big Brother.
A estada em Buenos Aires foi extremamente agradável. Em três dias, gastamos uns trezentos dólares que o meu pai me dera antes de partir. Ficamos em um hotel de quinta categoria perto da zona portuária e fomos conhecer a cidade. Foram momentos de grande emoção, com um sentimento de despedida.
Nenhum de nós fazia planos de terminar os estudos em Moscou. Seriam muitos anos e ninguém sabia o que nos esperava. Mas já que nos davam uma passagem até ao continente vermelho, por que não aproveitar? Falávamos em aprender a língua e voltar, eu e Marcos. Zau, mais comedida, não descartava a hipótese de vir a tornar-se médica. Para mim, não fazia diferença nenhuma, o curso de Agronomia não me atraía assim tanto e eu só pensava em conhecer a Praça Vermelha.
Jantamos num restaurante chinês e fomos conhecer a noite de Buenos Aires. A Calle Florida, principal ponto de agitação, era um frenesim constante, algo assim como São Paulo às quatro da tarde. As eleições presidenciais que iriam eleger Raul Alfonsin aproximavam-se e o tema estava na ordem do dia nas conversas. No meio da rua, uma pequena multidão discutia política. Era incrível a organização dos argentinos. Defendiam os pontos de vista com veemência e o sangue parecia subir-lhes a cabeça. Mas o que mais impressionava era a maneira ordenada com que faziam a coisa. No meio das pessoas, havia um homem que era uma espécie de moderador. Ele comandava a discussão. Passava a palavra, controlava o tempo das intervenções. E ninguém desacreditava a sua autoridade. Com Marcos, comentei como eram os argentinos um povo muito mais politizado que o brasileiro.
O nível de vida, na Argentina, sempre foi mais alto do que no Brasil. Após a segunda guerra mundial, o governo de Perón alimentou a Europa com grãos. Buenos Aires é uma cidade bela e cheia de avenidas largas. No início do século passado, fizeram uma reforma geral no centro da cidade e alargaram as ruas, construindo grandes edifícios em estilo neo-clássico, contou-nos um argentino que conhecemos e nos acompanhou parte do caminho de regresso ao hotel. Neste trajeto, vi pela primeira vez a Casa Rosada, sede do governo argentino, cujos balcões (sacadas) serviram de palco para os discursos inflamados de Eva Perón.
Na minha cabeça, ficou a milonga que ouvimos, do lado de fora da rua, junto a uma multidão, num restaurante da Calle Florida. Um guitarrista e uma cantora deram um show que deixou a todos extasiados, inclusive nós. A forma como eles vivem a sua cultura e o seu patriotismo é uma coisa extremamente passional. Eu, que sou gaúcho e sempre conheci o tango, fiquei emocionado. Os dois baianos ficaram embasbacados. Os argentinos gritavam após cada dedilhado, cada acorde da canção. Depois, no quarto do hotel, com aquela música ainda na cabeça, Zau e eu fizemos amor num colchão cheio de molas que mais parecia um mar revolto. Foi o que chamamos de a “última foda no continente sul-americano”.

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