Friday, November 04, 2005

OS PRIMEIROS RUSSOS

Após termos decolado de Dakar, um engenheiro russo, falando muito bem o espanhol, aproximou-se de nós e puxou conversa, não nos largando até o pouso final em Moscou. Ele, juntamente com as dezenas de russos que ocupavam a parte traseira do avião, tinha estado a trabalhar os últimos seis meses numa plataforma marítima na Venezuela como trabalhador altamente qualificado. Segundo nos explicou, o governo soviético recebia em dólares pelos seus serviços mas pagava-o em rublos, a moeda oficial do país. Só tinha direito a uma pequena parte do salário em divisas estrangeiras. De qualquer modo, era, segundo os padrões soviéticos, um trabalhador muito bem pago. O seu salário mensal rondava os seis mil e quinhentos rublos, o que, segundo o próprio admitiu, era muito dinheiro para um cidadão soviético. Não era a primeira vez que trabalhava fora da URSS. Já havia estado antes na Venezuela e também trabalhara vários anos no Iraque, sempre em temporadas de cerca de meio ano, com obrigatórias férias de alguns meses passadas em casa ou em alguma estância balnear ou casa de repouso.
Segundo o nosso novo amigo, o governo soviético subvencionava milhares de parques de descanso, para os trabalhadores passarem as suas férias, sempre diminutas, nos poucos meses do verão da Rússia. Mas o acesso a essas casas de repouso era difícil. Na sua vida inteira, um cidadão soviético não descansava mais do que uma ou duas vezes numa casa dessas. A população da antiga URSS era superior três ou quatro vezes a do Brasil e as listas de espera eram eternas. Os membros do Partido Comunista Soviético, que eram milhares, tinham preferência na hora de passar as férias na praia. A Costa do Mar Negro foi, desde os tempos imperiais, o destino preferido dos russos nos meses do Verão. O secretário-geral do PC Soviético, como uma tradição herdada dos antigos czares russos, desde Vladimir Lênin, o pai da revolução de Outubro de 1917, até Garbatchov, também sempre passou férias na Criméia, uma pequena península no Mar Negro.
Como um verdadeiro russo, o nosso amigo foi à cabine do piloto e trouxe um aguardente de confecção caseira, que fomos bebendo durante todo o caminho. A conversa decorreu de uma forma simpática, até porque - e isto vim a saber depois - os russos sempre gostaram muito de conviver com estrangeiros. Apesar do salário elevado, aquele engenheiro pensava em não voltar a trabalhar no exterior. Já tinha juntado algum pé-de-meia e precisava ficar mais tempo em casa para manter o casamento. Disse com a maior naturalidade que, na Rússia, quando um marido se ausenta por muito tempo, a mulher sempre arranja outro. Os setenta anos de regime comunista haviam aparentemente acabado com a noção de pecado entre os russos. Descobri mais tarde que eles, à sua maneira, tinham as mesmas angústias e ambições que nós, ocidentais. E uma religiosidade latente e reprimida, que acabaria por explodir.
O primeiro contacto com o povo soviético foi com os trabalhadores no avião. Eram todos muito altos, fortes e comportavam-se de uma maneira diferente da nossa. De aparência e gestos rudes, não evitavam o contato físico. Naqueles estreitos assentos, dormiam amontoados uns aos outros. Ao conversar, batiam-se e empurravam-se. Eram todos muito simpáticos conosco. Nós e mais quatro chilenos, que estavam sentados bem mais à frente naquela imensa aeronave de fabrico soviético, éramos os únicos estrangeiros no meio daquela multidão de russos. No final do voo, os que estavam sentados perto de nós recolheram o queijo e a mortadela que haviam servido durante o voo e nos deram, dizendo que nós, como estudantes, iríamos precisar. A bolsa que nos dariam na universidade não deveria ser grande coisa, disseram.

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