Sunday, November 06, 2005

O planeta vermelho

Uma coisa que todo soviético nunca deixou de perguntar, quando conhecia um estrangeiro, era se realmente a União Soviética era o país mais avançado do mundo e se os seus cidadãos tinham mesmo um nível de vida superior aos do ocidente, como o regime apregoava. E foi esta uma questão sempre difícil, pois o país dos sovietes era uma experiência ao mesmo tempo extraordinária e aterrorizante. Ao custo de milhões de mortos vítimas da coletivização forçada imposta nos anos 30, os burocratas do partido único haviam construído um país gigantesco, segunda potência mundial desde o final da segunda grande guerra até finais dos anos 80, quando caiu o muro de Berlim, e o único exército no planeta com arsenal bélico capaz de rivalizar com os Estados Unidos. Isto sem falar que os russos competiram de igual para igual com os americanos na corrida ao espaço, enviando os primeiros seres vivos à órbita da Terra, a cadela Laika e o astronauta Iuri Gagarin, tendo introduzido novas palavras no cotidiano do cidadão ocidental, como Sputnik (o satélite que em russo significa “companheiro de caminho”, neste caso, companheiro de caminho do nosso planeta) e Soyus (as naves soviéticas, traduzidas à letra, a palavra “união”).
Mas apesar de tudo, da grande crise que sobreveio à dissolução da URSS, os soviéticos não viviam mal naquele início da década de 80. Moscou é o que se poderia chamar “o paraíso da classe média”. Havia extensas filas e carência de gêneros de primeira necessidade porque o poder aquisitivo da população era elevado. A grande verdade é que os soviéticos não tinham onde gastar o seu dinheiro. Havia famílias do interior que trabalhavam durante anos para juntar milhares de rublos e fazer compras numa viagem à capital. Em geral, estes viajantes queriam comprar o que não encontrariam no lugar onde viviam, nos confins do império. Aparelhagens de som, televisores e roupas de origem estrangeira eram os artigos mais procurados. A custa dos subsídios generosos, que viriam a se revelar fatais para a economia estatizada da ex-URSS, a produção nacional era baratíssima. Montar uma casa não custava muito. Móveis e eletrodomésticos, desde que fossem fabricados no país, custavam preços irrisórios para o bolso de um cidadão médio soviético. O ensino era todo subsidiado. Enquanto estudante de medicina, Zau pôde comprar todos aqueles álbuns de anatomia para o seu curso a preços módicos, em edições mais modestas que as suas congêneres ocidentais, mas de igual valia para o estudante. Muito acessíveis também eram as famosas máquinas fotográficas Zenith, assim como o material para a prática caseira da fotografia. O único senão é que não havia controle de qualidade na indústria soviética e para comprar uma simples lente era necessário procurar uma que não tivesse uma bolha muito grande no vidro.
Os salários dos trabalhadores soviéticos eram bastante elevados. Um motorista de ônibus recebia 300 rublos por mês enquanto um trabalhador das minas de carvão chegava aos 600 rublos. Por paradoxal que seja, médicos e professores universitários recebiam cerca de 150 rublos por mês, o mesmo que uma calça jeans alcançava no mercado paralelo. Cá em baixo, estávamos nós, os estudantes da preparatória, que recebiam 80 rublos de bolsa. No primeiro ano da universidade, o estipêndio subiria para 90 rublos. Esta tabela salarial soviética foi construída a partir de um dos postulados marxistas, o de que a mais valia de uma sociedade é produzida pela classe operária. O sistema soviético atribuía um salário conforme a participação de cada classe social na produção da riqueza do país. Os mineiros desciam ao interior da terra para, com o seu trabalho, sustentar a indústria siderúrgica, base da economia socialista, logo recebiam mais pelo seu trabalho. Esta era a lógica que determinava os pisos salariais e que causou sempre grande insatisfação nos meios acadêmicos. No contato com os estrangeiros, os médicos eram os que mais manifestavam a sua mágoa contra o sistema, que lhes fazia ter bem menos poder aquisitivo que um trabalhador qualificado. Hoje em dia, a situação não mudou muito. Engenheiros, cientistas, médicos e professores vivem no limiar da pobreza. A classe alta da nova sociedade surgida com a derrocada do comunismo, um capitalismo selvagem com uma estrutura baseada na máfia siciliana, são os políticos, militares, seguranças privados e homens de negócios quase sempre escuros.
O salário do secretário-geral do PCUS rondava os 800-900 rublos mensais, calculavam alguns amigos moscovitas, razoavelmente bem informados. Por seu turno, um marechal do exército ou um cientista de área estratégica poderiam receber até dois mil rublos por mês, o que não significava que os seus rendimentos fossem maiores que os da classe que governava o país. Havia uma elite soviética habituada a regalias de consumo a que a grande maioria da população não tinha acesso. Para satisfazer estes ímpetos capitalistas da classe dirigente, havia as chamadas lojas especiais, cujo acesso somente era possível com a devida credencial. No centro da capital soviética, a 200 metros do Kremlin, uma fila dupla de carros Volga, negros e brilhantes, denunciava a proximidade de um estabelecimento destes. Da entrada de um prédio, saíam famílias com pacotes que colocavam nos porta-bagagens das viaturas estacionadas, à espera de levá-las para casa. O mais curioso é que junto à entrada do então secreto edifício, havia (e provavelmente ainda há) uma placa com as inscrições “Na sacada deste prédio, em 19 de abril de 1919, Vladimir Ilitch ‘Lênin’ falou aos comandantes do Exército Vermelho antes da partida para a frente de combate da Guerra Civil”. Misha, um judeu moscovita e um dos primeiros amigos fora da Lamumba, foi quem me mostrou a casa pela primeira vez e explicou que aquela loja era destinada aos membros do comitê-central do PCUS e suas famílias.
Toda uma cadeia de lojas semelhantes abastecia a elite soviética naqueles tempos. Caviar, salmão fumado, frutas tropicais, roupas de marca ocidentais, vodka para exportação, frutas e hortaliças frescas todo o ano eram artigos que não existiam nas prateleiras do cidadão comum e que faziam a diferença no orçamento das famílias, para além de outros privilégios. No entanto, as regalias eram distribuídas consoante a posição no aparelho de poder soviético. Os membros do poderoso comitê central do PCUS - cerca de duas mil pessoas - ministros e altos quadros do Soviet Supermo, o parlamento, recebiam mensalmente uma ração do Kremlin, que dava para alimentar com extravagância os seus familiares. Marechais e almirantes soviéticos, cientistas famosos, heróis do socialismo altamente condecorados, astronautas, escritores galardoados com o Prêmio Lênin, diretores de jornais importantes como o Pravda (verdade, em russo), o Izvestia (notícia), cantores famosos e estrelas do balê faziam parte da elite soviética e tinham também as suas lojas especiais, assim como os funcionários médios do partido, oficiais do ministério da defesa, e a polícia secreta também tinham as suas lojas, mas com menos artigos de luxo e importados, porém mais caros que nas lojas dos seus superiores. Os velhos bolcheviques que pertenciam ao partido desde os anos 30 também recebiam uma cesta básica especial, que eram escalonadas segundo a importância de cada um. Por toda Moscou, havia uma infinidade de estabelecimentos variados, desde lavanderias a salões de beleza, que serviam a uma clientela selecionada.
Tolik, um guitarrista russo que estudou comigo anos mais tarde, me contou que, antes de ter ingressado na escola de música, trabalhou num destes estabelecimentos secretos, só que mais dedicado aos prazeres mundanos. O meu amigo contou-me que foi a época em que mais ganhou dinheiro na vida e que durante dois anos recebeu cerca de 3 mil rublos mensais tocando numa casa de meninas para membros do partido e operacionais do KGB. A casa noturna funcionava num restaurante nas cercanias de Moscou e tinha uma placa que dizia “estabelecimento fechado” eternamente dependurada à entrada. Alguns clientes chegavam a pagar 100 rublos por cada música tocada pelo grupo em que meu amigo participava. Tolik trabalhou neste lugar até que a casa foi descoberta e fechada durante a razia que Iuri Andropov empreendeu no início dos anos 80, numa tentativa algo desesperada de fazer o sistema funcionar com o apoio das forças policiais. O antigo chefe do KGB do Leonid Brejnev mandara a sua polícia secreta proceder a blitzes em filas de lojas pela cidade de Moscou para detetar quem estava trabalhando ou não, já que muita gente se furtava ao trabalho, que era obrigatório. Provavelmente, terá se cansado das estrepolias do seu antecessor, cujo mandato ficou conhecido como a “era da estagnação”, um período em que a economia não saía do lugar e proliferavam os privilégios e mordomias da casta que comandava o império.
Os analistas ocidentais bem tentaram calcular a exata dimensão da elite soviética. Num país com uma população de 280 milhões de habitantes, houve que apontasse a cifra de um milhão de pessoas fazendo parte da elite, o que, incluindo os familiares, daria vários milhões. Em comparação aos países ocidentais, a distribuição de renda na antiga União Soviética era de longe mais bem equilibrada. O fosso entre pobres e ricos nos Estados Unidos da América era muito maior que o fosso entre a classe trabalhadora na URSS e suas elites. É verdade que havia descontentamento entre os soviéticos, sobretudo entre aqueles que haviam cursado o ensino superior, médicos, engenheiros, professores universitários, em suma, pessoas que se enquadrariam na chamada intelligentsia. Mas é também verdade que os soviéticos aceitavam que os dirigentes do país vivessem melhor que a maioria, afinal esta era uma tradição que vinha da Rússia Imperial. De qualquer forma, apesar de uma minoria viver melhor que a imensa maioria da população, naquele tempo, a vida em Moscou era extremamente barata. Os aluguéis dos apartamentos rondavam os seis, sete rublos por mês, incluindo água, luz e aquecimento das moradias, o que não era pesado no orçamento das famílias, onde era impensável que um dos cônjuges não trabalhasse. As mulheres faziam os mesmos trabalhos que os homens, como conduzir transportes pesados ou trabalhar na construção civil, e tinham o mesmo poder aquisitivo e status social.


Os transportes eram então a verdadeira maravilha da antiga União Soviética. O preço do bilhete do transporte urbano não custava mais que cinco kopeks. As viagens de trem ou avião também eram baratíssimas. Para nós, estrangeiros, que tínhamos acesso a divisas estrangeiras, os preços das viagens internacionais saíam por uma ninharia. Na primeira vez que voltei ao Brasil, três anos mais tarde, o bilhete de ida e volta a Buenos Aires custou pouco mais de 2 mil rublos, cerca de 300 dólares no câmbio negro. Para viajar de trem, ida e volta até Berlim, pagava-se 90 rublos, pouco mais de dez dólares.
Antes da perestroika, as únicas lojas, supermercados e restaurantes que havia eram de propriedade do estado. Paralelamente ao grande e único negócio do poder soviético, que comandava todas as áreas da economia, existia entretanto uma outra economia informal, que abastecia o desejo mortal dos cidadãos soviéticos em adquirir objetos de consumo fabricados nos países ocidentais. Isto porque a qualidade da indústria soviética deixava muito a desejar. É paradoxal que a União Soviética fosse o país que mais produzisse calçado no planeta e que esse encalhasse nas prateleiras das lojas estatais. O estado permitia a revenda de artigos usados n os chamados “komissioni magazini”, onde se entregava o que se queria vender e o produto era então colocado na vitrina. Este locais eram muito movimentados e as suas redondezas eram mercados clandestinos, onde se vendiam sobretudo artigos importados. A polícia tentava exercer alguma vigilância, mas era difícil controlar a multidão. Os grandes casacos usados no inverno russo ocultavam as transações. Era um mercado de usados e os soviéticos não se importavam de comprar em segunda mão, inclusive vestuário. Muitas vezes, chegavam a oferecer um bom punhado de rublos pelos tênis ou o casaco que eu levava vestido. Os moscovitas abordavam com naturalidade os estrangeiros nas ruas, oferecendo-se para comprar qualquer coisa, um lenço que fosse, propondo muitas vezes conseguir em troca artigos soviéticos difíceis de encontrar, como caviar ou vodka para exportação.
O dilema maior da economia soviética eram os chamados planos quinquenais, onde eram estabelecidas metas nas várias áreas de atividade por um período de cinco anos. A indústria tratava de cumprir o plano estabelecido, atingindo as quotas previstas de produção, e ignorava as reais necessidades de consumo da população. Este desequilíbrio entre a oferta estatal de bens e serviços e a procura de parte do consumidor soviético levava a situações caricatas. Em 1984, ano em que Zau e eu casamos na embaixada brasileira em Moscou, havia excesso na oferta de frigoríficos mas não se podia comprar papel higiénico, um produto que naquela época era chamado de “deficitário”. No seu lugar, utilizávamos guardanapos de papel, até que, alguns anos mais tarde, já havia papel higiênico nas lojas do estado, em grandes quantidades, sem que se recorressem às filas para saciar a demanda, enquanto que, para adquirir um frigorífico, era preciso esperar meses. Para perceber como a produção planificada da economia, centralizada nas mãos do estado, abastecia de modo irregular o mercado soviético, imaginemos um diretor de fábrica de bolachas que tem que cumprir as metas impostas, por um período de cinco anos, para não correr o risco de vir a ser apeado do posto que ocupa. Em virtude dos resultados serem calculados em rublos, ou seja, o ministério estabelecia um limite orçamental para a produção, o plano era considerado cumprido quando se tinha gasto o dinheiro previsto. Numa situação destas, as fábricas de bolacha produziam muito mais bolachas doces, que aumentavam o seu custo por causa do açúcar, e as bolachas salgadas desapareciam das prateleiras em um ou dois anos. Até o próximo plano quinquenal, os soviéticos eram obrigados a comer somente bolachas doces.
Os produtos sumiam das prateleiras e ninguém sabia prever quando e onde apareceriam novamente. No interior, entre os artigos deficitários contabilizava-se a carne e, em muitos lugares, só se podia comprar chouriço e mortadela, principalmente no inverno. Por isso, milhares de pessoas viajavam diariamente a Moscou para comprar carne, frutas e hortaliças frescas ou derivados do leite, como o requeijão, o “tvôrag”, que nos últimos anos do comunismo viria a desaparecer por completo. Naquela época, os moscovitas diziam que a população flutuante diária da sua capital chegava ao milhão. Moscou e Leningrado eram as duas principais cidades, com muitos estrangeiros, e tinham um abastecimento privilegiado de produtos provenientes dos países do Leste Europeu ou das repúblicas bálticas, de melhor qualidade, e que eram colocados sem aviso prévio nas lojas. Tênis tchecoslovacos ou chineses, vestidos com muito melhor corte da Polônia, mel ou batatas provenientes de Cuba, laranjas do Marrocos, bananas do Equador, ameixas secas da antiga Iugoslávia apareciam como que do nada. Para não serem apanhadas de surpresa, as donas-de-casa soviéticas andavam sempre com uma sacola de plástico. As novidades eram também vendidas na rua e, de repente, um caminhão estacionava, três ou quatro homens descarregavam alguns caixotes, uma mulher tomava conta da balança e do caixa improvisado, formando-se logo uma imensa fila de compradores. Os homens também participavam na jornada diária das compras e colocavam os artigos que compravam nas pastas 007 que geralmente traziam consigo. A princípio, podia-se pensar que os moscovitas eram todos funcionários de escritório, carregando para todo lado a sua pasta executiva cheia de papéis, numa imensa sociedade “orwelliana”*. Mas, na maior parte das vezes que vi alguém abrir uma pasta destas, no metrô ou nalguma praça, foi para sacar de lá uma garrafa de vodka e um sanduíche de mortadela.
As filas eram uma instituição na antiga União Soviética. Se alguma se formava, era sinal de que o que estava à venda era algo que se podia comprar. E as pessoas entravam numa fila sem ao menos perguntar que produto era comercializado, o que talvez até nem valesse à pena, pois muitas vezes ninguém saberia até se aproximar do vendedor, o que poderia levar horas. Muitas vezes, as pessoas adquiriam algo que não precisavam realmente, mas havia que aproveitar a ocasião, comprar logo vários artigos não fosse algum parente ou conhecido necessitar. Para não desperdiçar as bagatelas, os russos andavam sempre com muito dinheiro no bolso. Muitos não se furtavam de vender à porta do magazine, com ágio, os produtos que mal havia comprado. As filas na União Soviética tinham um regulamento tácito, que à partida as pessoas respeitavam. Podia-se marcar um lugar na fila e voltar mais tarde. Porém, este regra funcionava se houvesse cumplicidade entre os integrantes de uma fila. Se o produto à venda fosse demasiado valioso, havia quem não gostasse desse sistema e reclamasse. Mas em se tratando de pepinos ou leite, não havia muita discussão. Nos grandes espetáculos de música ou de teatro, as filas formavam-se com dias de antecedência para comprar os poucos bilhetes que eram postos à venda. Nestes casos, elaborava-se uma lista por escrito das pessoas que iam chegando e uma pessoa ou mais se encarregava de pernoitar na bilheteria em representação das pessoas daquela lista.
Nas primeiras visitas às lojas estatais soviéticas, a impressão era de que havia alguma fartura, porque havia muita coisa exposta nas prateleiras e vitrinas. Sensação esta que se desvanecia ao se criar uma rotina de vida na grande metrópole. Descobria-se que fazer as compras era um exercício diário e penoso de cerca de duas a três horas. Levar leite, pão, queijo e chá para casa não era uma tarefa rápida e significava entrar em várias filas para se conseguir o almejado. Numa loja normal de bairro, um “magazin”, como se diz em russo, havia sempre uma ou duas caixas trabalhando. Os queijos, a manteiga, o leite, o chouriço e as mortadelas, o açúcar e o chá, cada um destes produtos era vendido em um balcão diferente. Saíamos da caixa registradora com vários tickets na mão e muitas filas pela frente. Aqui é que o jeitinho de marcar um lugar na fila dava jeito, sobretudo se falássemos um bom russo. O queijo e a manteiga eram vendidos a granel e cada vendedora pesava antes de o entregar. Eram setores onde sempre se esperava um bom bocado. Às vezes tínhamos primeiro que pesar o queijo, dependendo do espírito da mulher que atendia, e depois irmos ao caixa tirar o ticket, o que me fazia tentar contabilizar qual dos dois métodos era menos cansativo, mas nunca cheguei a uma conclusão. Os russos contavam que havia grupos de adolescentes que, para troçar da situação, formavam filas na brincadeira, em locais públicos, e depois se afastavam, divertindo-se ao ver a multidão que entretanto se formara.
Uma vez, Zau, eu e Kitty, uma amiga da República Dominicana, fomos a uma pizzaria perto da Biblioteca Lênin. No hall de entrada, um homem que parecia ser o gerente disse-nos que o tempo de atendimento médio era de 40 minutos. Para nós, que já estávamos habituados, pareceu-nos normal. Era inverno, nevava lá fora e queríamos nos aquecer e comer qualquer coisa. Enquanto deixávamos os casacos no bengaleiro, uma senhora russa entra e o gerente repete-lhe o que nos havia dito. A mulher diz que não pode esperar e regressa à rua. Entramos e estranhamos, pois a pizzaria estava praticamente vazia. Kitti até comentou, com aquele seu tom peculiar: “Coño!, que a esta gente nos les gusta trabajar!”. Pois passaram dez minutos e tínhamos as pizzas em cima da mesa. Ficamos espantados. O gerente espantava os clientes para não ter que trabalhar. O seu salário estava garantido no final do mês e, pelos vistos, não estava interessado no futuro do negócio. Provavelmente teria conseguido o seu cargo de diretor por indicação partidária e a vida não lhe corria mal. Na maior parte das vezes, tínhamos que aguardar do lado de fora de alguma pizzaria ou casa de chá para sermos atendidos, pois havia poucos estabelecimentos do gênero, como era de se esperar numa grande metrópole como Moscou. No inverno, foram muitas as ocasiões em que enfrentamos condições climatéricas bastante adversas para tomar um chá com bolachas.
Nos restaurantes e pizzarias, não podíamos nos sentar onde quiséssemos. Quem distribuía os lugares era a garçonete, com o seu ar superior e face avermelhada. Não se podia ocupar uma segunda mesa enquanto houvesse um lugar vago na primeira. Ao cidadão comum, não restava outra coisa a não ser resignar-se com a falta de privacidade. Uma boa recepção dependia também do funcionário. Em geral, as pessoas que trabalhavam na área dos serviços eram mal humoradas, mas, quando se apercebiam de que éramos estrangeiros, chegavam a ser bastante amáveis. Com o cidadão comum, costumavam ser implacáveis, donos do pedaço, grosseiros inclusive. Frequentemente vi senhoras perguntarem numa loja à mulher sentada atrás do balcão o preço de alguma coisa e esta não responder bulhufas, nem um pio. Certa vez, enquanto eu olhava a vitrina de um balcão, uma dona-de-casa fartou-se de não ser ouvida e disse alto, com uma entonação que não esqueci: “A senhora fala russo?”, expressão que memorizei, com o mesmo sotaque moscovita da senhora, e utilizei inúmeras vezes nos anos seguintes. Os meus cabelos compridos certamente assustavam as mulheres, pois elas acordavam da sua letargia, não fosse eu filho de algum membro do comitê central do PCUS, autorizado a andar vestido à ocidental.
Quando chegamos a Moscou, naquele ano de 1983, o maior bem que um consumidor soviético podia se dar ao luxo de adquirir era um gravador de cassetes duplo, com relógio e equalizador. No mercado-negro, o seu preço ascendia aos 2 mil rublos, uma pequena fortuna. Me recordo de ver numa vitrina na avenida Lênin, numa das primeiras explorações feita aos arredores da universidade, o primeiro leitor de vídeo-cassete da URSS, apresentado como um trunfo da indústria do país na sua luta ideológica contra o ocidente. O aparelho em exposição não estava, no entanto, à venda, e o simples cidadão só podia comprar um sob encomenda. Ter carro em Moscou era também um luxo para poucos. O modelo mais econômico não saía por menos de 15 mil rublos e era preciso esperar meses ou anos. Ser membro do PCUS ou ter algum amigo filiado no partido único da ex-União Soviética podia fazer com que esta espera fosse menor.
As famosas lojas Berioskas eram as únicas lojas em que se vendiam artigos importados em divisas estrangeiras. Com acesso restrito a estrangeiros e soviéticos ligados ao corpo diplomático, este modelo seria encontrado em todos os países de modelo de gestão comunista, incluindo Cuba, Angola e Moçambique. Os estudantes estrangeiros aproveitavam para aumentar o seu magro orçamento comprando artigos e revendendo-as aos amigos soviéticos. Geralmente, as vendas eram feitas no círculo de amigos ou a algum colega de residência estudantil comprador de muamba, geralmente um soviético com contatos fora da residência. Os estudantes africanos que recebiam dólares das suas embaixadas tornavam-se verdadeiros homens de negócio com o passar dos anos. Nem todos porém recebiam ajuda externa e, pouco a pouco, a universidade dividia-se entre aqueles que tinham dinheiro e os que não tinham. Nestas lojas, também eram aceites os chamados “rublos certificados”, dado a cidadão soviéticos que haviam cumprido alguma missão de serviço no estrangeiro, como diplomatas, atletas ou bailarinos do Teatro Bolshoi.
A instituição maior da economia paralela soviética, surgida pela incapacidade do estado em produzir bens de consumo duráveis, era a propina. Esta era uma situação absolutamente normal, que não causava constrangimento a nenhuma das parte envolvidas. O diretor de uma loja de produtos alimentares do estado vendia 90 por cento do estoque pela porta dos fundos, a quem pagasse mais, e colocava o resto na prateleira. Nos açougues, a carne em exposição era da pior qualidade, só guisado de segunda. O filet mignon era vendido a conhecidos, que não se importavam de pagar mais pelo produto. Nas conversas entre amigos, era comum que alguém se gabasse de ter um amigo diretor de loja do estado, que conseguia este ou aquele produto difícil de encontrar. Com exceção dos mais fanáticos, todo funcionário público recebia algum por fora para fazer o seu trabalho mais rapidamente. Um bom presente comprado numa loja para estrangeiros fazia com que qualquer processo não fosse parar ao alto da lista dos papéis.
Apesar do monopólio estatal na produção e distribuição, os agricultores soviéticos podiam comercializar parte das suas colheitas em mercados onde os preços fugiam ao controle do estado. Estes mercados existiam um pouco por toda a parte e colmatavam as graves lacunas no fornecimento de bens perecíveis. Carne de boa qualidade, enchidos e conservas, grande variedade de frutas frescas e secas, legumes e verduras que jamais eram vistos nas lojas oficiais comprovavam que na ex-URSS afinal podia se comprar qualquer coisa, era tudo uma questão de poder aquisitivo. Os agricultores de outras repúblicas mais favorecidas pelos sol, como o sul da Ucrânia ou a Moldávia, voavam diariamente às capitais do império para colocar os seus produtos à venda nos mercados privados.
O clima solarengo da então república soviética da Moldávia fazia daquela diminuta porção de terra, historicamente ligada ao território da atual Romênia, uma das repúblicas mais ricas da antiga União Soviética. Os seus habitantes tinham um nível de vida superior ao das demais repúblicas em virtude das boas e variadas colheitas que as suas terras proporcionavam. Nas primeiras férias de verão, em agosto de 1984, tive a oportunidade de contatar in loco esta realidade. Os moldavos dedicavam-se ao seu próprio cultivo e as plantações do estado estavam abandonadas. Os mercados tinham grande variedade de frutas e legumes, ovos e produtos lácteos, mas nem uma alface havia sido plantada em uma cooperativa do estado. Na capital da Moldávia, que naquele tempo se chamava Kishiniov, as frutas custavam barato mas em Moscou, a milhares de quilómetros de distância, meia dúzia de pêssegos não saíam por menos de 5 rublos, vinte vezes mais caros que numa loja do estado, mas de muito melhor qualidade. Os mercados eram o único lugar onde se podia comprar produtos de qualidade e sem filas, sendo que muitos moscovitas naquela época já podiam dar-se ao luxo de frequentá-los com alguma assiduidade.
Com base na teoria do internacionalismo, formulada por Vladimir Lênin, os governos soviéticos que se sucederam ao longo dos anos procuraram fazer com que os cidadãos soviéticos das muitas nacionalidades da ex-URSS fizessem parte de uma cultura comunista homogênea, conservando ao mesmo tempo as suas identidades nacionais, as suas tradições e, principalmente, os seus idiomas. Como resultado desta política, o analfabetismo foi erradicado e foram criados os alfabetos e as gramáticas de quase centena e meia de diferentes nacionalidades e povos. A partir daí, os estudantes soviéticos sempre puderam optar entre cursar uma faculdade em russo ou na sua própria língua. As ciências naturais obtiveram resultados notáveis, destacando-se as áreas da física e da química. No entanto, com a política de fazer com que todos os aspectos da cultura refletissem o universo da luta de classes e fomentassem a revolução comunista, a literatura, as belas-artes e também a ciência sofreram com as restrições impostas pela idéia de que os valores políticos podem condicionar os conceitos artísticos ou científicos.
Com Lênin ainda vivo, o modernismo russo viveu ainda uma era dourada, mas a invenção do “realismo socialista” como uma corrente estética viria a estabelecer limites para os artistas soviéticos. Na música, o jazz foi proibido por ser considerado “uma manifestação burguesa” - quando sempre foi uma música dos negros norte-americanos. O mesmo argumento serviu para que a cibernética fosse banida das universidades, o que fez com que a ex-URSS registrasse um grande atraso em relação aos países ocidentais quando se deu a “revolução informática” nos anos 90 do século passado. Como consequência, muitos cientistas ou escritores foram “banidos” e internados em hospitais psiquiátricos ou campos de trabalho forçado. Muitos se tornaram famosos do lado de cá da cortina de ferro, como o físico nuclear Andrei Sakharov ou os escritores Aleksandr Soljenisin e Boris Pasternack.
No país dos sovietes*, apesar do regime vigente se auto-intitular de “ditadura do proletariado”, o que vigorou sempre foi a ditadura da burocracia. Um fenômeno, aliás, identificado pelo próprio pai da revolução, Vladimir Lênin, no seu testamento, o de que o aparelho de estado havia sido tomado pelos pequenos funcionários do partido, originando uma nova classe dominante, a nomenklatura. Aquando da subida dos bolcheviques* ao poder, Lênin logo percebeu que não conseguiria conduzir um país sem especialistas e tratou de pagar bons salários aos quadros que eram oriundos do antigo regime, para que estes não abandonassem a nova nação. A convivência entre a antiga classe média do czarismo e os comunistas não foi nada pacífica, como nos relata o célebre romance de Pasternack, Doutor Jivago*, eternizado pelas telas de cinema. A nova classe dirigente da Rússia tratou de moldar o sistema segundo os seus interesses de eternização no poder, surgindo uma nova intellingentsia, que adotou a burocracia como ciência e filosofia de estado. O procedimento burocrático impregnou a sociedade toda a partir daí e a teia de relações da nova elite. Iussef Stálin, um burocrata que não teve a menor participação nos grandes feitos das revolução de 1917, foi o precursor do culto à personalidade, que muitos revolucionários por este mundo afora iriam copiar quando ocuparam a cadeira do poder.
Uma dos grandes feitos apontados pelos comunistas soviéticos era a figura do pleno emprego. De fato, uma pessoa podia demitir-se de uma fábrica e arranjar emprego no outro quarteirão. Não havia estabelecimento, comercial ou industrial, que não tivesse uma placa enferrujada a anunciar a admissão de trabalhadores. Só que, na economia estatizada soviética, onde tudo era de todos e nada era de ninguém, um imenso funcionalismo público, os níveis de produtividade eram baixíssimos. Um operário de uma fábrica metalúrgica que ganhasse 300 rublos por mês tinha o seu salário garantido fizesse ele 30 ou apenas 1 detalhe por dia de trabalho. O mais normal, entre um gole e outro de vodka, era fazer meio detalhe. Esta situação da economia soviética já tinha sido constatada por analistas ocidentais desde os anos 60, quando começou o chamado “período de estagnação da era Brejnev”, assim descrito pelos cientistas políticos da era Garbatchov.
Na verdade, foi Nikita Krushev quem percebeu que a economia soviética não conseguia competir com a do ocidente, mas a sua inabilidade nos assuntos econômicos e a sua maneira atabalhoada de ser fizeram com que fosse apeado pela linha dura do partido, que não havia gostado que os crimes do ditador Stálin tivessem sido expostos ao mundo no XX congresso do PCUS em 1956. Leonid Brejnev e o seu círculo não conseguiram colocar a economia nos trilhos, mas fizeram o possível para manter as aparências a nível interno. No plano internacional, foi o que se viu. A URSS alinhou na corrida armamentista do presidente norte-americano Ronald Reagan e foi obrigada a jogar a toalha no tapete.
Assim que, quando cheguei em Moscou em 1983, o gigante comunista não passava de um império semi-paralisado, vivendo das exportações de petróleo e do gás natural da Sibéria e com um parque industrial onde nove em cada dez empresas davam prejuízo. Alguns anos passariam ainda antes que um jovem (para os padrões soviéticos) secretário-geral do PCUS considerasse que era a hora de fazer alguma coisa. Michail Garbatchov andava ainda na universidade quando se deu a chamada “primavera krucheviana”, época em que o jazz deixou de ser proibido e os setores progressistas do PCUS tentaram dar um rosto mais humano ao comunismo. O último líder da URSS protagonizou a maior reviravolta cultural no país, a perestroika, criando um clima de liberdade de expressão inédito, ao mesmo tempo que quis implantar as bases para uma reforma gradual da economia e a sua conversão para a economia de mercado, mas com um cariz socialista. O que Garbatchov fez foi nada mais nada menos que aplicar a NEP - Nova Política Econômica, criada por Lênin, nos anos 20, quando este se apercebeu da quebra da produção na sequência da centralização da economia nas mãos do estado. A NEP consistia na liberação da atividade do pequeno comércio e das profissões liberais, de modo a combater a escassez de gêneros de primeira necessidade e serviços primários que assolava a então jovem nação comunista.

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