Friday, November 04, 2005

Fria recepção

Ao desembarcarmos, fomos recebidos por dois brasileiros da associação de estudantes da universidade. Foi um alívio, porque eu não conhecia nenhuma letra do alfabeto russo, ao contrário de Zau, que andara a estudar sozinha no ano anterior, na esperança de ganhar a bolsa. Além do mais, nem sequer sabíamos onde ficava a universidade nem como lá chegar. Por isso, os membros da associação brasileira encarregavam-se de, nos primeiros tempos, orientar os calouros de cada ano. Ajudavam com os testes preparatórios, levavam-nos a comprar coisas nas lojas, acompanhavam-nos para todo o lado. Só que a primeira impressão foi péssima. Robson, o mais baixinho deles, barba e cabelo comprido, era um arrogante típico. O outro, Ivanildo, um gorducho forte e cabeludo, à primeira vista pareceu inofensivo. Viemos a saber mais tarde que os dois eram membros do Partido Comunista Brasileiro e que Robson era o representante máximo no pedaço. No nosso voo havia porém mais uma brasileira e tivemos que esperar até que ela saísse. O seu nome era Marli e seria colega de Zau na medicina. À nossa espera, estava um microônibus, com um motorista da universidade.
O aeroporto Sheremeetiva II está a cerca de 40 minutos de Moscou e, por isso, nos esperava uma pequena viagem. Ao sentarmo-nos no veículo, fui logo parar a um lugar junto à janela, atrás do motorista. Aliás, tem sido sempre assim comigo. Quando entro em algum meio de locomoção, seja ele navio, trem ou avião, procuro sentar-me sempre em algum lugar estratégico, o que para mim significa um lugar onde possa observar tudo, principalmente o exterior. Não via a hora de conhecer aqueles prédios clássicos que eu imaginava da arquitetura de Moscou.
Pela janela, já na auto-estrada, só vislumbrava árvores e a conversa dos brasileiros que vieram nos buscar já começava a chatear-me. O pequeno Robson só sabia gabar-se dos êxitos do socialismo e da nova sociedade que iríamos conhecer. Como em nossa bagagem havia cerca de 80 discos em vinil, perguntou se havia algum da Banda do Canecão. Respondi-lhe que não e, para provocar, acrescentei que tinha quase todos os do Caetano Veloso. “Ah, sim, aquela bicha”, disse, num tom jocoso, aquela coisa petulante, com barba e cabelo à Che Guevara. Irritei-me mais ainda e voltei a olhar para a janela, à procura dos prédios que me indicassem que estava a chegar a Moscou.
À minha esquerda, continuava a só ver árvores com folhas amareladas, à beira da estrada, em bosques a perder de vista. De repente, o pequeno ônibus vira à direita, entrando numa avenida de onde pude avistar, ao longe, pequenos edifícios com cerca de cinco andares, perdidos no meio da mata, pré-fabricados em betão. O nosso transporte anda mais meio quilômetro e vira de novo, só que desta vez à esquerda. Entramos por um caminho cercado de pinheiros e, duzentos metros depois, a carrinha parou em frente ao prédio da residência estudantil para os estudantes da faculdade preparatória. “Chegamos”, disse Robson, e começamos a descarregar a nossa bagagem, que era imensa.
Ainda antes da viagem, no aeroporto internacional de Buenos Aires, no balcão da Aeroflot, foi necessário convencer as funcionárias da companhia, russas que falavam espanhol, para que nos deixassem embarcar com quase cem quilos a mais do peso permitido - que na altura era de vinte quilos por pessoa -, o que nos dava direito, à mim e à Zau, a apenas quarenta quilos. Como estávamos duros, não havia o que negociar. Até que uma delas, por bondade, disse à outra que era melhor deixar passar pois, se não tínhamos dinheiro, não havia outra alternativa.
E agora descarregávamos as nossas imensas malas para o saguão do edifício, por entre portas que não paravam de abrir e fechar, com estudantes a sair e a entrar constantemente. Foi o nosso primeiro contacto com a fauna estudantil da Universidade da Amizade entre os Povos Patrice Lumumba (eis o nome inteiro da dita) que, na altura, era destinada a acolher estudantes de cento e sete países do terceiro mundo. Muçulmanos, árabes e africanos, vestidos de branco, com uma espécie de mortalha, ou latino-americanos, com cara de índio, cruzavam por nós, sem prestar muita atenção aos novos colegas.
Éramos seis, quatro brasileiros e dois chilenos que haviam chegado no mesmo voo. Ficamos à espera de que fossem informar a nossa presença, o que demorou algum tempo. Para dizer a verdade, a primeira impressão foi decepcionante. O saguão do edifício era sujo, as paredes mereciam levar uma carga de tinta, os sofás eram peças de museu. Havia uma parede grande, coberta por uma imensa cortina vermelha, envelhecida, como se a tivessem colocado ali há uma vintena de anos. Frente à cortina, impávido e colosso, pairava um enorme busto de Lênin, em gesso branco. Aquela imagem iria me perseguir em todos os edifícios públicos em que entrei durante todos os quase sete anos em que vivi na extinta União Soviética, de 1983 a 1990.

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