Quando ganhei um bolsa para estudar na URSS, eu vivia com Zau, cujo verdadeiro nome é Maria do Rosário, em Morro de São Paulo, perto de Valença, na Bahia. Quatro meses antes, juntamente com uma amiga, Xexéu, havíamos comprado uma parcela de terra na ilha com o objectivo de viver naquele local paradisíaco mas selvagem, concretizando um típico sonho de jovem da classe média brasileira que tenha passado pelo seu período de bicho-grilo lá por finais dos 70. Tínhamos decidido viver de artesanato e de alguma agricultura, se pudéssemos.
A notícia da bolsa apanhou-nos completamente de surpresa. Naquela época, o Brasil não tinha relações culturais com a URSS e o pedido da bolsa foi feito através do Partido Comunista Brasileiro. A solicitação havia sido entregue no ano anterior, numa altura em que ainda vivíamos em Salvador, a um jovem que também havia estudado em Moscou e era membro do PCP. Tivemos que escrever uma carta em nome do reitor da universidade e explicar por que gostaríamos de viver na União Soviética. Enviamos também umas fotografias 3x4 que tiramos num lambe-lambe do Pelourinho, em Salvador. Na altura, não obtivemos resposta, o que nos fez pensar que o nosso pedido tinha sido rejeitado. Mais de um ano depois, em finais de agosto de 1983, quando estávamos no meio do mato, de partida para um passeio ao centro da ilha, aparece-nos de surpresa a mãe de Zau. Tinha viajado desde Salvador, enfrentado duas horas em barco pelo rio desde Valença, percorrido alguns quilómetros de trilha na mata, morro acima, para nos dar a notícia da bolsa. Dona Alzira estava toda exausta mas contente. A sua filha iria estudar Medicina e eu, Agronomia. Em russo.
No período que antecedeu à nossa partida, eu tentei recolher informações sobre a vida na URSS, mas havia pouco material disponível. Não me preocupei em levar comigo muitas coisas que depois viriam revelar-se necessárias porque achei que em Moscou havia de tudo. Eu pensava que, se a União Soviética disputava de igual para igual com os Estados Unidos o controle do mundo, se enviava astronautas para o espaço e construía estações orbitais, então deveria ser um país superdesenvolvido.
A imagem que eu guardava dos russos desde a infância era a dos atletas das Copas do Mundo, altos, loiros e fortes, com uma camiseta vermelha escrita CCCP (quando criança, eu também me perguntava por que razão os jogadores de futebol russos tinham nomes como Smirnov ou Balakov, com a mesma terminação. Cheguei a pensar, coisa de miúdo, que eram todos comunistas e, portanto, deveriam chamar-se todos da mesma forma). Na memória recente, guardava as imagens do filme norte-americano Reds, dirigido e protagonizado pelo Warren Beaty, e que conta a história do jornalista John Reed, que presenciou os dias da revolução russa e é o único cidadão estrangeiro que está sepultado nas muralhas do Kremlin (o filme é baseado no livro “Os dez dias que abalaram o mundo”, e conta ainda com Diane Keaton e Jack Nicholson). Para falar a verdade, eu não tinha a menor ideia do que iria encontrar ao desembarcar em Moscou.
O ex-estudante da Patrice Lumumba que tratou dos papéis da bolsa para nós não foi capaz de dar uma informação que nos fosse útil. Membro do extinto Partido Comunista Brasileiro, esteve mais empenhado em vangloriar-se com os êxitos do socialismo nos poucos contactos que mantivemos. Não soube, por exemplo, alertar-nos para o facto de que o dólar no câmbio negro em Moscou valia muito mais do que no câmbio oficial. Se tivéssemos tomado conhecimento desse fato com antecedência, talvez os primeiros tempos na capital soviética não tivessem sido tão modestos.
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