Sunday, November 13, 2005

Uma viagem no gelo

Zau e eu partimos rumo a Leningrado para duas semanas de férias de inverno, juntamente com a turba toda da Lumumba, num trem que partiu à meia-noite em ponto, nenhum segundo a mais ou a menos, num bom exemplo de como tudo funcionava com rigorosa pontualidade na ex-União Soviética. Como dizia o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, em seu livo “Viagem pelos países socialistas”*, os trens soviéticos eram realmente os mais confortáveis da Europa, com leito em todas as classes, em contraste com os trens europeus ocidentais. Nas duas primeiras classes, viajava-se em compartimentos espaçosos de duas ou quatro camas. Os professores se instalaram na 1ª classe e, nós, estudantes, viajamos em segunda. A terceira classe não possuía camarotes, mas as pessoas iam deitadas na mesma, num emaranhado de beliches, com o vagão assemelhando-se a um daqueles “paus-de-araras” do nordeste brasileiro, bem mais confortável, é claro, mas com os passageiros obrigados a um convívio sem qualquer privacidade, as famílias todas juntas, a criançada na maior algazzarra. Às seis da manhã, desembarcamos na Maskovski Vagzal (estação de Moscou), e dirigimo-nos em ônibus para uma casa de descanso numa povoação vinte quilômetros a norte de Leningrado, na costa do golfo da Finlândia, no mar Báltico, que naquela altura do ano estava congelado.
Numa das tardes em que Zau e eu decidimos explorar as redondezas da casa de descanso, um edifício antigo, muito bonito, um daqueles que fazem parte da extensa rede soviética de unidades desta natureza, construídas, ao longo de décadas, para que cada trabalhador soviético pudesse gozar, pelo menos uma vez na vida, uns dias de repouso merecido, fomos conhecer a aldeia de Zelenogorski e bisbilhotar as lojas do estado. Estava um tempo bom, pouco vento e cerca de dez graus negativos, o que, nestas circunstâncias, podia-se passear algumas horas ao ar livre sem que se chegasse a congelar. Tomamos duas krushkas de cerveja cada um num pequeno supermercado e, já com os sentidos bastante alterados, resolvemos passear à beira-mar. Dava um frio na espinha ver aquele marzão todo congelado, uma infinita pista de patins no gelo, com o horizonte a se perder de vista. Houvera sido por ali, numa daquelas praias, que Vladimir Lênin, numa certa ocasião, entrou clandestinamente na Rússia, atravessando o mar a pé sobre o gelo desde a Finlândia, acompanhado por um guia perito nestas travessias. Não resistimos também a experimentar a mesma sensação e literalmente caminhamos sobre as águas, adentrando talvez uns dez metros da costa pelo que era possível deduzir com toda aquela neve e gelo à mistura. Entorpecidos pelos efeitos do álcool, gozávamos aquela briza gélida em nossos rostos, aquela paisagem glaciar, quando de repente Zau sentiu uma necessidade urgente de urinar, efeito previsível após a ingestão de tanto líquido. Sem outra alternativa, até porque estávamos sós naquela imensidão, baixou as calças e colocou a bundinha ao léu para satisfazer as suas necessidades. Vendo-a ali, acocorada, aproveitei para brincar, dizendo-lhe: “Cuidado, não vá provocar um degelo, pois ainda caímos na água”.
No regresso a Moscou, enfrentamos a nossa primeira onda de frio, ainda que apenas uma pequena amostra, com os termômetros a registrar vinte graus negativos. É com essa temperatura que o frio começa a infligir algum suplício ao corpo humano, o contato com ar queimando a pele. Perde-se a sensibilidade na ponta do nariz e as orelhas ficam tão geladas que dá a impressão que iriam se partir como um cristal de gelo se alguém desse um estalo com o dedo. Na Rússia, até uma certa temperatura, a vida transcorre normalmente, as pessoas vão ao trabalho e os estudantes às escolas e universidades, ninguém deixa de fazer nada por causa do frio. Quando a temperatura desce aos vinte graus negativos, os alunos da primária ficam em casa. Com o meu filho, eu controlava a temperatura com o auxílio de um termômetro do lado de fora da janela, pois, apesar do inverno, aconselha-se que as crianças pequenas passeiem todos os dias, para reforçar a imunidade contra os vírus da estação. Até os dezesseis graus negativos, se não estivesse a ventar, eu podia levá-lo a passear por umas duas horas, sem problema, que era o recomendado pelas autoridades sanitárias.
Nos anos que vivi em Moscou, houve alguns invernos mais rigorosos em que a temperatura desceu aos 30-35 graus negativos e por aí manteve-se, umas duas semanas, o que era realmente muito frio. Nestas ocasiões, era grande o risco de congelamento das canalizações de gás da rede de aquecimento central, o que podia provocar rupturas no abastecimento de energia. O reveillon de 1979 foi um dos mais frios do século na Rússia, quando a temperatura desceu aos 42 graus negativos. Nessa ocasião, dezenas de quarteirões em Moscou ficaram sem energia durante umas duas semanas. Eu conheci uma família que me disse que, naqueles dias, tiveram que dormir todos juntos na mesma cama, cheios de cobertas e vestidos com as pesadas roupas de inverno, botas e chapkas incluídas. Por causa do frio, sem poder preparar nada para comer, com qualquer xícara de chá quente congelando em poucos minutos, a família teve que se alimentar de produtos enlatados até que a avaria fosse consertada. Tomar banho, então, foi coisa que ninguém cogitou.

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