Um dia, quando regressava à casa, depois das aulas, notei que os pássaros estavam muito alvoroçados. Piavam muito, fazendo enorme alarido, o que me fez recordar o filme “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, pois aquilo não parecia ser normal. De repente, como se tivessem combinado, levantaram vôo, aos milhares, enchendo o céu. Lá no alto, o barulho que faziam era ensurdecedor. Estariam tramando algum ataque? Perseguiriam as pessoas, a exemplo da ficção cinematográfica? Outros milhares de pássaros, de todas as direções, vieram juntar-se ao grupo. Mais parecia ser uma convenção com milhares de participantes quando, como se tivessem dado o toque de retirar, rumaram todos em direção ao sul, em busca de climas mais quentes. Cumpria-se o ritmo da natureza. Só ficaram os corvos, pássaros que conseguem sobreviver às mais baixas temperaturas. Era o sinal de que o inverno estava à porta. Foi por estes dias que levaram os estudantes da preparatória a comprar as roupas para o inverno no GUM, o principal centro comercial moscovita, situado na Praça Vermelha, em frente ao Kremlin. As roupas que nos deram eram quase todas de fabrico soviético. Um grande sobretudo para o inverno, botas para a neve, um terno de corte antiquado, um cachecol horroroso e a inevitável “chapka”, aquele gorro russo peludo, mundialmente conhecido. As roupas esportivas eram da Tchecoslováquia e, no geral, o vestuário oferecido pela Lumumba era bastante resistente, apesar do modesto design. Com a chegada da neve, os estudantes da Lumumba vestiram-se de igual para enfrentar as baixas temperaturas. O caminho até as aulas, todos os dias, mais parecia um cortejo de casacos e gorros escuros, que contrastavam com o colorido sintético dos cachecóis. Os que haviam trazido alguma roupa de casa ainda conseguiam fugir à uniformização, mas os estudantes dos países mais pobres, principalmente de África, tinham que se contentar com as roupas que a universidade oferecera. No primeiro inverno, ninguém conseguiu fugir ao uso do sobretudo mas, com o passar dos anos, adquiria-se alguma resistência ao frio.
Quando as temperaturas baixaram, tivemos que vedar a janela de vidros duplos do quarto com algodão e esparadrapo. Durante os cinco a seis meses em que a neve ir perdurar, tínhamos que nos contentar com a portinhola que havia no canto superior da janela, que acabava por ser o nosso frigorífico. Numa sacola, pendurávamos o que podia ficar congelado. Também se colocavam lá as cervejas, quando se queria que gelassem rapidamente. Às vezes, o frio era tanto que algumas garrafas estouravam, devido ao aumento do volume da cerveja, que se congelava. Os andares da parte de baixo do prédio eram muito frios pois, como estudamos em física, o ar quente sobe, e a temperatura aumentava a medida em que se subia o edifício. No segundo ano, eu e Zau recebemos um quarto da universidade para morar que ficava no quinto andar e, como tinha uma calefação grande, a temperatura no inverno era bastante agradável, podendo se andar em calções. Este primeiro quarto era tão quente que, mesmo no inverno, se estivessem apenas alguns graus negativos, tínhamos que deixar a janelinha aberta, pois senão sufocávamos de calor, o que até era irônico, pois lá fora não parava de nevar.
A resistência dos russos ao frio é espantosa. Num dia de inverno, é quase impossível andar sem luvas, pois os dedos das mãos congelam. As orelhas são outro ponto sensível e faz-se mister cobri-las. No entanto, causava inveja ver os moscovitas à espera do ônibus, segurando sacolas ou pastas sem luvas, como se nada fosse. Eu tive amigos que, mesmo com uma temperatura negativa de 14 graus centígrados, usavam apenas uma camiseta sob o casaco. O frio é também elemento importante na medicina russa, utilizado como método de cura. Conhecidas no mundo inteiro são aquelas imagens dos russos banhando-se em buracos abertos no rio congelado. O que poucos sabem é que a maioria destas pessoas o faz por recomendação médica. Liova, um russo que foi meu colega na Lumumba e um dos meus melhores amigos durante os sete anos que vivi em Moscou, tinha graves problemas renais, que o obrigavam a constantes internamentos. Só conseguiu se curar quando se converteu num “morsh”, como são chamadas as pessoas que nadam em águas geladas. Tive uma professora que contou que o filho dela sofria de asma e que foi curado com “banhos de frio”. Ele o punha, quando pequenino, apenas em cuecas e abria a janela da habitação por uma, duas horas, todos os dias.
A neve era uma novidade para nós e o frio não nos impedia de, nos finais-de-semana, sair para passear, ir a algum museu ou simplesmente passear nos bosques. Tínhamos que nos agasalhar bem, colocar luvas, cachecol e, principalmente, não esquecer de vestir ceroulas. Quando o meu filho nasceu, o trenó passou a ser uma componente obrigatória nas saídas. Até aí um objeto que eu só havia visto em filmes, o trenó passou a fazer parte do nosso cotidiano, assim como sempre o foi para os povos dos países frios. O trenó tanto pode ser um instrumento de lazer como ser utilizado para fazer compras. Com Dadi, o meu filho, eu saía todos os dias para passear e ir às lojas do estado comprar os produtos para o dia-a-dia, como leite, pão e queijo. No bosque perto da universidade, havia uns caminhos feitos especialmente para trenós, em declive acentuado, e dava um gozo muito grande deslizar por eles rapidamente, geralmente com a corrida acabar num monte de neve. O interessante é que a neve não molha. Basta sacudir as roupas e está-se novamente pronto para outra. No entanto, havia que tomar muito cuidado em determinadas alturas do ano, no início do inverno e na primavera, quando as temperaturas são negativas à noite mas, durante o dia, podem às vezes chegar até os 15 graus centígrados. A água descongelada vira gelo com o cair da temperatura e muitas vezes, ao sair de casa no dia de seguinte, tínhamos pela frente um verdadeiro ringue de patinação. A neve que eventualmente caísse cobria o caminho com uma fina película, disfarçando o perigo. No princípio, as quedas eram inevitáveis, mas com o tempo íamos aprendendo a nos equilibrar e, com um pouco de prática, pegava-se embalo e deslizávamos como se estivéssemos de patins.
Eram umas cinco da tarde quando começou a nevar pela primeira vez desde que chegara a Moscou. Nevou tanto que, no outro dia de manhã, ao sairmos para as aulas, a paisagem mudara completamente. Se não fosse o trabalho dos limpa-neves, provavelmente teríamos dificuldade em sair da residência. É incrível que, mesmo em meio a tempestades de neve, as máquinas que retiravam a neve das ruas não descansavam um minuto. Em cada prédio, havia uma pessoa responsável para limpar a neve dos passeios e abrir caminho até as casas. Este trabalhador estava sempre disponível para limpar a neve, porque às vezes nevava dias sem parar. O mesmo se passava com as máquinas, que estavam ligadas dia e noite, se acaso fosse necessário. No final do inverno, como a neve não derretia, formavam-se às vezes grandes paredões com a neve que ia sendo acumulada ao lado dos passeios. Na primavera, aquela neve toda virava um charco.
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