No terceiro dia após a nossa chegada, levaram a nós, os “prepos”, para os exames médicos na policlínica da universidade, que ficava noutro lado da cidade, perto do monastério Danskoi, uma das muitas preciosidades de Moscou e lugar que viríamos a frequentar durante os nossos anos vermelhos. Desta vez, nos transportaram numa van antiga e fechada, parecida com os camburões policiais brasileiros, mas de menores dimensões. No trajeto até a policlínica, me senti um bocado prisioneiro, sensação esta que aumentou quando estacionamos no pátio da policlínica. A arquitetura pesada do edifício - de duas construções, uma mais antiga que a outra - e a sua má conservação me faziam sentir num daqueles filmes da 2ª guerra mundial. Esta sensação de estar num filme de época esteve sempre presente durante toda a minha estada na antiga União Soviética. É que Moscou - assim como todas as outras cidades do país - ainda não tinha sido invadida pelos anúncios luminosos das grandes marcas comerciais. A capital do império soviético chegava a ser ainda mais bonita no inverno, com toda aquele neve. Claro que havia muita propaganda socialista, retratos do líder por toda a parte e aqueles famosos cartazes de propaganda, com todos aqueles desenhos de trabalhadores e camponeses unidos a marchar. Mas a iluminação era discreta, os “marqueteiros” do regime ainda não haviam descoberto o néon. Hoje em dia, a capital da Rússia é igual à qualquer das outras grandes cidades da Europa e Estados Unidos, no que toca a letreiros luminosos. Mas, nos anos 80, antes da queda do muro de Berlim, o centro de Moscou mantinha quase o mesmo aspecto do século XIX.
O ambulatório da policlínica ficava na parte antiga do edifício e eu não havia me enganado. Aquilo era mesmo o túnel do tempo. Pelo menos desde a última grande guerra mundial que não se faziam reformas naquela ala. E o pior, os instrumentos médicos pareciam também ser os mesmos. A certeza chegou quando entrei para tirar sangue. Claro que já estava à espera de não encontrar seringas descartáveis. O que eu já havia visto na residência estudantil da Lumumba fazia prever que não haveria grandes luxos capitalistas na minha vida em Moscou. Por acaso, eu já tinha sido apresentado à única lâmina de barbear fabricada pelos comunistas soviéticos e ela não era de aço inoxidável, mas antes igual às que o meu pai usava nos anos 60. Mas o que se passou a seguir superou todas as minhas expectativas: não havia seringas. A enfermeira mandou-me estender o braço e enfiou uma agulha de aí uns 10, 12 cm e, na outra ponta, colocou um tubo de ensaio. Fez sinal para que eu abrisse e fechasse a mão para o sangue escorrer, e deu-me o tubo de ensaio para segurar. Foi tudo tão rápido que não tive nem tempo de reagir. Num instante, me vi ali segurando o tubo de ensaio a encher-se de sangue e pensei cá comigo: “cruz, credo, aonde eu vim parar”. De repente, a chilena que viera com a gente no avião entra na sala e desmaia ao ver o tamanho da agulha. E, quando veio a si, não houve quem a convencesse a dar o braço à agulha. A enfermeira bem que tentou, mas esbarrou na cara feia da chilena, resoluta, que já ameaçava voltar para casa.
Isto das agulhas na antiga União Soviética é um assunto que sempre me atemorizou. Antes de partirmos, ainda no Morro de São Paulo, tivera conhecimento que uma nova epidemia assolava os países do hemisfério norte. No Brasil, a aids ainda era completamente desconhecida, mas na Europa já começava a fazer os seus estragos. Eu e Zau ficamos sabendo sobre a síndroma através de uma reportagem publicada numa revista que um rapaz de Berlim Ocidental, que estivera hospedado em nossa casa, havia deixado por lá. Passados dois anos, no Brasil a aids ganhava terreno e os soviéticos continuavam a utilizar seringas não descartáveis. O medo sempre existiu e o risco, também.
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