Saturday, November 05, 2005

A língua russa

O meu progresso rápido com a língua russa deu-se por vários motivos. Em primeiro lugar, por causa do meu professor, que falava espanhol muito bem, pois havia morado em Cuba, e tinha um método muito rápido de aprendizado. O russo é uma língua como o latim e o alemão, em que quase não se utilizam as preposições e não há artigos. Para dar sentido aos verbos, o predicado sofre variações, as chamadas “declinações”, que tanto sofrimento causaram aos estudantes brasileiros do liceu quando o latim era uma língua obrigatória, antes de ser abolida nos anos (?). Por exemplo, no caso dos nomes terminados em “ov” ou “ev”, esta terminação significa “da família de”. No caso de Garbatchov, o “ov” indica que ele pertence à família dos “gorbis” (que em russo significa corcunda). Ao contrário de outros professores, que utilizavam o manual indicado para estrangeiros, em que a língua era ensinada aos poucos, o professor Vassili preferiu-nos explicar-nos os casos da língua (que variam em função dos verbos e determinam a declinação) e partir logo para a prática. Para isso, ele tinha uma grande tabela com as terminações dos cinco casos da língua russa e, a cada aula, torpedeava-nos com perguntas, obrigando-nos a falar. Enquanto isso, a maioria dos professores adotava o método oficial e ia dando os casos aos poucos, no decorrer do ano letivo. Alguns anos mais tarde, quando fui deportado da Inglaterra e passei seis meses no Brasil, tive a oportunidade de utilizar o método do professor Vassili. Dei aulas a três turmas da Casa de Amizade Porto Alegre-URSS e lições particulares ao jovem pianista porto-alegrense Alexandre Dossin, que ganhara uma bolsa para o Conservatório Tchaikovski. Despejei-lhe logo os casos em cima e em dois meses ele estava já pronto para se defender em Moscou. Outro fator que não se pode desprezar é que na União Soviética não havia mais que cinco ou seis alunos em cada sala de aula, o que aumentava muito o rendimento dos estudantes. Com uma turma maior, é necessário respeitar o ritmo de aprendizado de cada um, enquanto que, com menos alunos na sala de aula, é possível uma maior proximidade e um melhor acompanhamento.
Outra ajuda preciosa no idioma recebi de uma estudante russa que conheci logo na primeira semana, quando todos os brasileiros da Patrice Lumumba foram levados a assistir um festival de música. Lídia tinha 17 anos e estudava numa escola especial para desenhistas. Estas escolas especiais eram a grande diferença que o sistema soviético de ensino apresentava em relação ao inimigo do ocidente. Se a criança tivesse habilidade em algum instrumento ou aptidões para a ginástica, era logo desde a escola primária inscrita num destes estabelecimentos. Ou seja, a especialidade era obtida nos três diferentes níveis de ensino, do primário ao superior. Os soviéticos sempre deram muita importância à arte e ao esporte, que serviam também de propaganda do regime, como os bailarinos do Bolshoi ou os atletas nos Jogos Olímpicos. O mal de tudo isto é que o destino de cada criança era forjado pelas orientações políticas dos membros do PCUS. Só os melhores cursavam o ensino superior. Lídia contou-me que ela não era uma aluna muito dotada e que, no final da escola, teria que trabalhar. Provavelmente, iria ser indicada a alguma editora e ilustrar livros escolares ou de leitura. De certa forma, o sistema estruturava a vida da pessoa, desde a infância, subsidiando o ensino e conferindo-lhe uma espécie de “salário”, o estipêndio, até terminar o curso superior, para no final lhe arranjar um emprego. Juntamente com o diploma, aos formandos era estipulada uma tarefa: trabalhar rumo ao socialismo.
Quando conheci Lídia, eu não falava um ai em russo, pois as aulas ainda não haviam começado. Ela era muito bonita e parecia-me um sonho naquele seu uniforme de colegial. Eu estava no hall do teatro onde decorria o festival, quando alguém me falou qualquer coisa em russo. Um estudante mais antigo que estava do meu lado, também ele brasileiro, explicou que uma turma de desenhistas queria fazer o meu retrato em carvão. Acedi, meio incrédulo, e foi aí, enquanto eu posava, que os nossos olhos se cruzaram e pintou logo uma grande atração mútua. No final, eu queria comunicar com ela, mas não nos entendíamos. Ela não falava nada de inglês e então peguei-a num braço e procurei alguém que servisse de intérprete. A coincidência maior viria revelar-se agora. Ela morava na mesma estação de metrô da universidade e marcamos de nos encontrar no domingo.
Prevendo dificuldades de comunicação, comprei dois dicionários pequenos (russo-inglês e vice-versa), que foram de muita valia. No princípio do nosso relacionamento (que durou até o regresso das férias de inverno), limitávamos a apontar palavras no dicionário para nos fazer entender. Quando as aulas começaram, eu pude colocar em prática os preciosos ensinamentos do professor Vassili. Naquele primeiro dia, Lídia me levou a conhecer a belíssima Galeria Tretiakov, o mais completo museu da arte russa do país. À porta da galeria, havia uma fila quilométrica, que dava volta ao quarteirão. Lídia não se perturbou e, a um dos guardas da polícia que fazia a segurança, mostrou a sua caderneta de estudante, argumentando qualquer coisa naquela língua estranha e apontando para mim. O guarda olhou em minha direção, refletiu por alguns instantes e fez sinal para que entrássemos, para espanto meu. Lídia me explicou depois que havia dito ao guarda que éramos estudantes e que nos haviam encomendado um trabalho urgente. Certamente, o polícia não quis se meter em complicações, pela maneira ocidentalizada como nos vestíamos. Ao contrário da imensa maioria dos soviéticos, que só tinham a sua disposição roupas de confecção ordinária, a russinha usava um casaco de peles comprado no estrangeiro, o que só por si fazia supor que não pertencia a uma família qualquer. Eu, com os meus cabelos compridos, e Lídia bem podíamos ser filhos de algum general, diplomata ou artista de renome. Foi assim que descobri que, na União Soviética, também se davam carteiraços.
Após a visita à galeria, Lídia levou-me a passear no Parque Gorki, à beira do rio Moscou, onde milhares de moscovitas passeiam no fim de semana. Desta vez, Lídia não pôde evitar a fila para a roda-gigante e lá ficamos à espera da nossa hora, atrás de algumas dezenas de outros casais. Entrar numa fila e esperar por muito tempo para fazer alguma coisa, como ir a um restaurante ou apenas comprar laranjas, era uma coisa que fazia parte do cotidiano das pessoas no leste europeu e ninguém parecia importar-se muito com isso. Enquanto aguardávamos, procurei o significado de montanha-russa no dicionário e qual não foi a minha surpresa quando descobri que os russos a chamavam de montanha-americana. A guerra fria havia chegado aos equipamentos de diversão. Deve ter sido obra de algum funcionário do partido, pensei eu, ou quem sabe não foi o Politburo que decidiu, na mais alta instância do pais, que era necessário responder à letra a esta provocação do imperialismo americano. Tentei explicar para Lídia, mas ela não percebeu o que eu queria dizer, pelo que desisti da tarefa. Era melhor não provocar um incidente diplomático na nossa recém estabelecida relação, entendi eu.
A roda-gigante era mesmo gigante. A vista lá do alto acabava por compensar aquela espera toda. Além do mais, movimentava-se muito devagar e acabamos por passar uma boa meia hora sentados. Aproveitei o momento para apanhar Lídia desprevenida e beijar-lhe. Ela correspondeu desajeitadamente e percebi que era o seu primeiro beijo. Raios. Apesar de eu ter 23 anos naquela época e ser apenas seis anos mais velho, senti-me corrompendo aquela beleza adolescente. As russas não eram nada ingênuas, principalmente as moscovitas, soube depois, mas Lídia era a primeira que conhecia e aquela foi a primeira impressão. Depois do beijo, a russinha deu-me a mão. Era a oficialização do namoro. Quando já começava a dominar o russo, Lídia me explicou que somente a sua mãe sabia do nosso envolvimento. Era um risco muito grande para a sua família. O seu pai era físico nuclear e a nenhum familiar era permitido manter contato com estrangeiros.
O meu namoro com a russinha não passou de um relacionamento adolescente. Lídia era mesmo uma menina especial, que me amava, e tinha sido educada para ser uma boa esposa. Para ela, não havia dúvidas de que seríamos marido e mulher. Eu não queria magoar-lhe mas também estava apaixonado. Sabia o quanto era quase impossível aquele amor, por várias razões, mas não conseguia deixar de comparecer àqueles encontros, onde dávamos longos passeios em parques cobertos de folhas amareladas por causa do outono. Foi por esta altura que aprendi a dizer em russo as palavras sol, coração e amor.
A nossa relação terminou quando Zau me deu um ultimato na viagem de férias a Leningrado, na segunda semana de janeiro do ano seguinte. Quando vivíamos no Brasil, a bela baiana Zau apregoou sempre uma relação aberta, não fosse a Bahia a extensão da África no Brasil, terra do muso da contracultura brasileira, Caetano Veloso, que por sinal é de Santo Amaro da Purificação, no recôncavo baiano, a mesma cidade onde Zau nasceu. Quando fiz-lhe ver esta prerrogativa que eu tinha, aceitou contrariada que eu me encontrasse com Lídia, pois eu não fiz segredo da nossa relação. Só que o namoro já durava uns meses e eu, pressentindo que a coisa poderia ficar mesmo séria, resolvi acabar com tudo. No regresso das férias, menti a Lídia que iria regressar ao Brasil. A russinha ficou desolada e eu me senti um patife. Na hora da despedida, Lídia chorava copiosamente. Foi com um nó na garganta que fiz desaparecer da minha vida aquela linda adolescente russa, que significava para mim um mundo completamente diferente e excitante, com uma pitada de romance de espionagem no tempo da guerra fria. E quem sabe não era mesmo, pois não era de duvidar que o KGB seguisse atentamente os passos dos familiares de físicos nucleares.
Anos mais tarde, estudava eu música na escola de música Gnessin, quando reencontro Lídia no metrô. Por coincidência, as nossas escolas se localizavam perto uma da outra e inclusive a estação do metropolitano era a mesma da Galeria Tretiakov, o que me fazia temer que um dia iria vê-la novamente. A linda russinha havia perdido a inocência juvenil e era agora uma mulher madura. Contou-me que sofreu bastante após a nossa separação e que não conseguiu me esquecer durante muito tempo. Que desenhou o meu rosto em todas as ilustrações que fez e me vestia de oficial de cavalaria a comandar exércitos em batalhas históricas. Me sentindo muito mal, expliquei-lhe o porque da minha atitude com o máximo de sinceridade. Mas Lídia já não acreditava no amor, a experiência da vida tinha lhe tirado esta esperança. Contou-me que o pai havia morrido (ou assassinado, pensei eu), que juntou-se com um rapaz, contra a vontade da mãe, indo viver com os sogros, mas que já havia regressado à casa por causa dos problemas de alcoolismo do seu companheiro. Revelou-me que não chegou a gostar dele como havia gostado de mim e que fui sempre o maior amor da sua vida. Desta vez, ao contrário da primeira vez que nos encontramos, entendi Lídia na perfeição. Disse que gostaria de me ver novamente e que o seu número de telefone continuava o mesmo. Prometi que ligaria, mesmo sabendo que não. O encanto havia se quebrado para sempre. Senti uma ponta de remorso por tudo o que fiz. Pensei que podia ter salvo Lídia do seu destino, o de uma moça moscovita esmagada pelo peso de uma sociedade que não lhe dava muito espaço para a individualidade. A russinha era mais uma peça do grande coletivo soviético, com a existência igual a de milhões de jovens moças da sua idade, que viviam na casa dos pais e que tinham maridos ou namorados que gostavam de abusar do vodka.
O conhecimento do idioma russo viria a ser de grande utilidade mais de dez anos depois de ter saído de Moscou, quando morava em Portugal e havia me tornado jornalista. Revertendo um fluxo histórico e secular, em que milhões de portugueses deixavam a pátria em busca de uma vida melhor, o pequeno país à beira-mar plantado passou a ser um destino de imigrantes na virada do milênio. A construção de importantes infra-estruturas no país, financiadas pela União Europeia, deu trabalho a milhares de cidadãos das antigas repúblicas soviéticas, que abriram as fronteiras com a queda do comunismo e ingressaram numa crise econômica sem precedentes. Este ciclo de obras em Portugal começou com a Exposição Universal de Lisboa, em 1998, e teve continuidade com a construção dos estádios e infra-estruturas para o campeonato europeu de futebol de 2004, coincidindo com o período de maior entrada de fundos da União Européia. Neste período, Portugal concedeu vistos de trabalho temporário a mais de 400 mil estrangeiros, que vieram dar um impacto positivo na economia portuguesa. Mais de metade dos novos imigrantes eram das repúblicas ex-soviéticas e falavam russo, que era a língua imperial. Como eles chegavam a Portugal e não entendiam nada, criei o primeiro programa de rádio no país em língua russa, numa emissora de âmbito regional com sede em Almeirim, cidade do distrito de Santarém. Em pouco tempo de antena, a audiência do programa se multiplicou e atingiu o seu auge durante o período de legalização extraordinária de estrangeiros aberto pelo governo português. No programa, eu tentava dar informações sobre a legislação e respondia em direto às questões dos ouvintes, que ligavam para o estúdio.

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