Friday, November 04, 2005

No meio do conflito

No aeroporto em Dakar, verificou-se um pequeno incidente com militares ingleses, bastante significativo do clima da época, em que eu, a dado momento, pensei que ficaria no meio de um fogo cruzado. Viria a descobrir mais tarde que os soviéticos eram muito rígidos na questão dos horários. Os trens, os aviões, os transportes públicos saíam todos na hora estipulada. E foi este rigor dos soviéticos que quase criou um incidente de consequências imprevisíveis.
Pelo plano de voo do avião soviético, deveríamos ficar na capital senegalesa apenas uma hora. Como fazia muito calor, e o embarque era feito a pé, desde a sala de espera até o aparelho, e reinava a desordem no aeroporto, ficamos por ali a vaguear, pela pista, eu, Zau, uma baiana com quem eu vivia há já uns dois anos, e Marcos, um rapaz de Salvador que também ganhara, como nós, uma bolsa de estudos para a Universidade Patrice Lumumba, em Moscou. Eis que de repente um avião militar inglês, um Hércules C-130, aterrisou e começou a descarregar bem no meio da pista.
Com a chegada do avião britânico, a pista foi evacuada e tivemos que ir para dentro do pequeno edifício do aeroporto, que logo se tornou um inferno por causa do calor e das centenas de passageiros do nosso e de outros voos. A determinada altura, o piloto russo, que cumpria ordens rigorosas, resolveu que era chegada a hora de acabar o intervalo e seguir viagem, mas esbarrou em soldados da força aérea real inglesa, que literalmente havia tomado o aeroporto. Os ingleses diziam que só depois de terem acabado o que tinham vindo fazer é que poderíamos embarcar. Nos aproximamos, Marcos, Zau e eu, e ficamos atrás daquele russo enorme, segurando as nossas coisas, à espera do desenrolar dos acontecimentos. A multidão fez o mesmo e isto deu força ao comandante, que se sentiu ainda mais cheio de razão. Com a discussão, gerou-se um clima de alta tensão. O russo já estava com o dedo na cara de um soldado inglês a ameaçá-lo quando, de repente, tomou coragem, forçou a barreira e irrompeu pátio adentro.
Seguimos colados ao homem, com os demais passageiros atrás. Pela frente nos esperava o pior. O nosso avião estava do outro lado da pista, atrás do Hércules inglês, que estava todo cercado por soldados. Caminhamos cerca de 100 metros até chegar à aeronave nos perguntando sobre o que fariam aqueles soldados numa provável missão militar, descarregando sei lá o que de importante, quando tivéssemos que nos cruzar. Foi realmente um ato de ousadia aquele. Passamos por debaixo da asa de uma daqueles aviões de guerra que eu só havia visto em filmes.
Eu tinha a certeza que eles não atirariam numa multidão indefesa, mas as coisas andavam tensas desde que um Mig soviético abatera, três semanas antes, um boeing 747 da companhia coreana KAL que havia se desviado da rota perto da ilha de Sacalina. Com a morte dos 260 ocupantes do aparelho, a comunidade internacional havia condenado veementemente o incidente e o clima, na altura, era de quase confrontação. Moscou alegara que o avião estava em missão de espionagem. Ao passarmos a barreira militar, suspirei de alívio. A viagem ia continuar.

1 comment:

Marcus Gusmão said...

Você lembra de coisas qeu eu já havia apagado da memória.