Leningrado, que se chamava São Petersburgo, que se chamou Petrogrado e que voltou a se chamar São Petersburgo, é uma das cidades mais lindas do mundo. No século passado, por várias vezes teve a sua designação alterada, sempre por motivações políticas. Fundada pelo czar Pedro I* em 27 de Maio de 1703, recebeu o nome de São Petersburgo, em homenagem ao padroeiro da cidade. Com a revolução de 1917, passou a se designar Petrogrado e, em 1924, com a morte de Lênin, Leningrado. Em 1991, um referendo devolveu-lhe o seu nome original.
Ao construir a sua capital no delta do Rio Neva, no âmbito da guerra que expulsou os suecos do território russo (1700-1721), Pedro I pretendeu garantir a segurança das terras reconquistadas e, ao mesmo tempo, “abrir uma janela para a Europa”, estreitando relações comerciais e culturais com os países ocidentais. Para a sua edificação, foram convidados os mais renomados arquitetos, engenheiros, pintores e escultores da Europa, que construíram uma cidade única, com grandes avenidas, luxuosos palácios e soberbas catedrais. Erguida sobre 40 ilhas, possui mais de 400 pontes e ganhou o epíteto de “Veneza do Norte”. Centenas de milhares de soldados, camponeses e prisioneiros de guerra encarregaram-se das difíceis obras, que tiveram lugar em meio a pântanos e condições climatéricas adversas. O czar trabalhava lado a lado com os seus súditos, ganhando a alcunha de “Pedro, o Grande”, por estes e muitos outros feitos, sendo que a Fortaleza de Pedro e Paulo, primeira construção da nova cidade, numa pequena ilha, foi construída a partir de desenhos do próprio monarca. O símbolo da determinação de Pedro I é o “Cavaleiro de Bronze”, que Catarina II mandou erigir na Praça do Senado, em 1782, magnífico monumento que representa o czar montado em seu corcel com o braço apontando o caminho a ocidente.
São Petersburgo passou a ser o gande centro político e cultural da Rússia e, após a morte do seu fundador (1725), todos os governantes que se seguiram trataram de dotar a capital do império de edifícios e monumentos esplendorosos. No reinado de Catarina, a Grande (1762-1796), a cidade tornou-se um dos maiores centros de cultura da Europa, sendo que foi, por esta altura, que viveu o acadêmico Mikhail Lomonôssov, o primeiro naturalista russo de renome mundial. Foi também durante este período, denominado “idade das luzes”, que em São Petersburgo foi criada a primeira escola nacional de dança, que deu início à tradição russa no balê. Na corte russa do século XVIII, a língua que se falava era o francês e, nos locais públicos, vedava-se o acesso a quem não utilizasse roupa “ocidental”.
Em 1764, a czarina fundou no Palácio de Inverno o museu Hermitage, que começou como uma coleção privada de obras de arte e hoje é o maior museu do mundo, com 3 milhões de peças em exposição, distribuídos por mais 400 salas em cinco palacetes, apenas um terço do espólio da casa, que guarda outros seis milhões de peças na despensa. Como despojos da segunda guerra, o Hermitage tem uma coleção de obras-primas que compreendem 24 pinturas de Rembrandt, uma Nossa Senhora com o pequeno Jesus de Leonardo da Vinci e quadros de Rafael, Rubens, Ticiano, Van Dyck, Veronese, Velasquez, impressionistas, pintores do século XX.
O maior poeta da Rússia, Aleksandr Pushkin (1799-1837), retrata em “Evgueni Oneguin”, o primeiro romance russo em verso, a vida de São Petersburgo no início do século XIX. Na antiga capital, nasceram ainda o renomado escritor Vladimir Nabokov, autor de Lolita, e o poeta Iossif Brodski, laureado com o prêmio Nobel. Mais recentemente, nos anos 80, o líder do então clandestino grupo musical Aquarium, Bóris Grebenshikov, era mitificado pelos fans soviéticos, tendo sido todo rabiscado o prédio em que vivia, por dentro e por fora, escada acima, num culto semelhante ao dedicado ao apartamento de Boris Pasternak*, em Moscou.
Entre os grandes compositores eruditos que viveram São Petersburgo nos séculos XIX e XX, estão Piotr Tchaikovski, Igor Stravinski, Serguei Prokofiev, Dmitri Chostakovitch, entre outros. A orquestra sinfônica de Leningrado não perdeu a galhardia nem quando a cidade foi bombardeada na segunda guerra mundial, apresentando-se regularmente, mesmo que desfalcada pelas bombas alemãs. Durante a guerra, Chostakovitch compôs uma sinfonia - XXXX -, que foi interpretada pela orquestra com a regência do próprio compositor, num intervalo entre os bombardeamentos.
O metrô de São Petersburgo é uma verdadeira obra-prima da engenharia, tendo sido construído por debaixo do leito das centenas de canais de cruzam a cidade, o que dá uma sensação de se estar viajando ao centro da terra. As escadas-rolantes adentram mais de 50 metros de profundidade e, lá embaixo, por medida de precaução em caso de algum vazamento de água, pesadas portas de ferro separam a linha de trem da plataforma de passageiros, com estas a abrirem-se somente à chegada da carruagem. A exemplo do metrô de Moscou, o de São Petersburgo é extremamente luxuoso, com estações inteiras construídas com mármores de todas as cores e muitas estátuas de bronze.
Até a revolução de 1917, São Petersburgo foi sempre a cidade mais importante do reino, deixando de ser a capital quando os comunistas transferiram o centro do poder para dentro das muralhas do Kremlin, em Moscou. Em fevereiro daquele ano, a cidade, que os russos sempre chamaram carinhosamente de “Peter”, presenciou a queda do czarismo, com a revolução burguesa, e, passados apenas oito meses, viu o cruzador Aurora dar o sinal para os bolcheviques tomarem o Palácio de Inverno. Nos anos negros de Stálin, na década de 30, a propósito do assassinato de Kirov*, dezenas de milhares de habitantes de São Petersburgo foram deportados para o arquipélago de Gulag ou para a imensidão da Sibéria*.
Quem for um dia a São Petersburgo, não deve deixar de visitar a Catedral de Santo Isaac que, com mais de cem metros de altura, pode ser vista de qualquer lado da cidade. Com paredes de mármore, foi o único edifício que foi poupado pelas bombas de Hitler, que ali queria instalar o seu quartel-general durante a 2ª guerra mas teve a sua pretensão frustrada. Durante 900 dias, a cidade resistiu ao cerco das tropas da Alemanha nazista, num dos capítulos mais heróicos do conflito. Mais de cem mil bombas foram despejadas sobre a cidade, que perdeu mais de um milhão de seus habitantes mas não se deixou conquistar. Visita obrigatória é também a estação de trens Finlândia*, onde Lênin desembarcou para fazer a revolução, proveniente da Helsinque.
Sasha Cavalcante é músico e jornalista. Estudou numa escola de jazz em Moscou e trabalhou em vários rádios e jornais de Portugal. O conteúdo deste blog é o rascunho do livro que Sasha está escrevendo sobre os tempos em que viveu na ex-URSS. Um relato em que o autor não está preocupado em tornar-se um historiador, mas, antes pelo contrário, descreve fatos como um mero repórter de um tempo que fez história.
Tuesday, November 15, 2005
Sunday, November 13, 2005
Uma viagem no gelo
Zau e eu partimos rumo a Leningrado para duas semanas de férias de inverno, juntamente com a turba toda da Lumumba, num trem que partiu à meia-noite em ponto, nenhum segundo a mais ou a menos, num bom exemplo de como tudo funcionava com rigorosa pontualidade na ex-União Soviética. Como dizia o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, em seu livo “Viagem pelos países socialistas”*, os trens soviéticos eram realmente os mais confortáveis da Europa, com leito em todas as classes, em contraste com os trens europeus ocidentais. Nas duas primeiras classes, viajava-se em compartimentos espaçosos de duas ou quatro camas. Os professores se instalaram na 1ª classe e, nós, estudantes, viajamos em segunda. A terceira classe não possuía camarotes, mas as pessoas iam deitadas na mesma, num emaranhado de beliches, com o vagão assemelhando-se a um daqueles “paus-de-araras” do nordeste brasileiro, bem mais confortável, é claro, mas com os passageiros obrigados a um convívio sem qualquer privacidade, as famílias todas juntas, a criançada na maior algazzarra. Às seis da manhã, desembarcamos na Maskovski Vagzal (estação de Moscou), e dirigimo-nos em ônibus para uma casa de descanso numa povoação vinte quilômetros a norte de Leningrado, na costa do golfo da Finlândia, no mar Báltico, que naquela altura do ano estava congelado.
Numa das tardes em que Zau e eu decidimos explorar as redondezas da casa de descanso, um edifício antigo, muito bonito, um daqueles que fazem parte da extensa rede soviética de unidades desta natureza, construídas, ao longo de décadas, para que cada trabalhador soviético pudesse gozar, pelo menos uma vez na vida, uns dias de repouso merecido, fomos conhecer a aldeia de Zelenogorski e bisbilhotar as lojas do estado. Estava um tempo bom, pouco vento e cerca de dez graus negativos, o que, nestas circunstâncias, podia-se passear algumas horas ao ar livre sem que se chegasse a congelar. Tomamos duas krushkas de cerveja cada um num pequeno supermercado e, já com os sentidos bastante alterados, resolvemos passear à beira-mar. Dava um frio na espinha ver aquele marzão todo congelado, uma infinita pista de patins no gelo, com o horizonte a se perder de vista. Houvera sido por ali, numa daquelas praias, que Vladimir Lênin, numa certa ocasião, entrou clandestinamente na Rússia, atravessando o mar a pé sobre o gelo desde a Finlândia, acompanhado por um guia perito nestas travessias. Não resistimos também a experimentar a mesma sensação e literalmente caminhamos sobre as águas, adentrando talvez uns dez metros da costa pelo que era possível deduzir com toda aquela neve e gelo à mistura. Entorpecidos pelos efeitos do álcool, gozávamos aquela briza gélida em nossos rostos, aquela paisagem glaciar, quando de repente Zau sentiu uma necessidade urgente de urinar, efeito previsível após a ingestão de tanto líquido. Sem outra alternativa, até porque estávamos sós naquela imensidão, baixou as calças e colocou a bundinha ao léu para satisfazer as suas necessidades. Vendo-a ali, acocorada, aproveitei para brincar, dizendo-lhe: “Cuidado, não vá provocar um degelo, pois ainda caímos na água”.
No regresso a Moscou, enfrentamos a nossa primeira onda de frio, ainda que apenas uma pequena amostra, com os termômetros a registrar vinte graus negativos. É com essa temperatura que o frio começa a infligir algum suplício ao corpo humano, o contato com ar queimando a pele. Perde-se a sensibilidade na ponta do nariz e as orelhas ficam tão geladas que dá a impressão que iriam se partir como um cristal de gelo se alguém desse um estalo com o dedo. Na Rússia, até uma certa temperatura, a vida transcorre normalmente, as pessoas vão ao trabalho e os estudantes às escolas e universidades, ninguém deixa de fazer nada por causa do frio. Quando a temperatura desce aos vinte graus negativos, os alunos da primária ficam em casa. Com o meu filho, eu controlava a temperatura com o auxílio de um termômetro do lado de fora da janela, pois, apesar do inverno, aconselha-se que as crianças pequenas passeiem todos os dias, para reforçar a imunidade contra os vírus da estação. Até os dezesseis graus negativos, se não estivesse a ventar, eu podia levá-lo a passear por umas duas horas, sem problema, que era o recomendado pelas autoridades sanitárias.
Nos anos que vivi em Moscou, houve alguns invernos mais rigorosos em que a temperatura desceu aos 30-35 graus negativos e por aí manteve-se, umas duas semanas, o que era realmente muito frio. Nestas ocasiões, era grande o risco de congelamento das canalizações de gás da rede de aquecimento central, o que podia provocar rupturas no abastecimento de energia. O reveillon de 1979 foi um dos mais frios do século na Rússia, quando a temperatura desceu aos 42 graus negativos. Nessa ocasião, dezenas de quarteirões em Moscou ficaram sem energia durante umas duas semanas. Eu conheci uma família que me disse que, naqueles dias, tiveram que dormir todos juntos na mesma cama, cheios de cobertas e vestidos com as pesadas roupas de inverno, botas e chapkas incluídas. Por causa do frio, sem poder preparar nada para comer, com qualquer xícara de chá quente congelando em poucos minutos, a família teve que se alimentar de produtos enlatados até que a avaria fosse consertada. Tomar banho, então, foi coisa que ninguém cogitou.
Numa das tardes em que Zau e eu decidimos explorar as redondezas da casa de descanso, um edifício antigo, muito bonito, um daqueles que fazem parte da extensa rede soviética de unidades desta natureza, construídas, ao longo de décadas, para que cada trabalhador soviético pudesse gozar, pelo menos uma vez na vida, uns dias de repouso merecido, fomos conhecer a aldeia de Zelenogorski e bisbilhotar as lojas do estado. Estava um tempo bom, pouco vento e cerca de dez graus negativos, o que, nestas circunstâncias, podia-se passear algumas horas ao ar livre sem que se chegasse a congelar. Tomamos duas krushkas de cerveja cada um num pequeno supermercado e, já com os sentidos bastante alterados, resolvemos passear à beira-mar. Dava um frio na espinha ver aquele marzão todo congelado, uma infinita pista de patins no gelo, com o horizonte a se perder de vista. Houvera sido por ali, numa daquelas praias, que Vladimir Lênin, numa certa ocasião, entrou clandestinamente na Rússia, atravessando o mar a pé sobre o gelo desde a Finlândia, acompanhado por um guia perito nestas travessias. Não resistimos também a experimentar a mesma sensação e literalmente caminhamos sobre as águas, adentrando talvez uns dez metros da costa pelo que era possível deduzir com toda aquela neve e gelo à mistura. Entorpecidos pelos efeitos do álcool, gozávamos aquela briza gélida em nossos rostos, aquela paisagem glaciar, quando de repente Zau sentiu uma necessidade urgente de urinar, efeito previsível após a ingestão de tanto líquido. Sem outra alternativa, até porque estávamos sós naquela imensidão, baixou as calças e colocou a bundinha ao léu para satisfazer as suas necessidades. Vendo-a ali, acocorada, aproveitei para brincar, dizendo-lhe: “Cuidado, não vá provocar um degelo, pois ainda caímos na água”.
No regresso a Moscou, enfrentamos a nossa primeira onda de frio, ainda que apenas uma pequena amostra, com os termômetros a registrar vinte graus negativos. É com essa temperatura que o frio começa a infligir algum suplício ao corpo humano, o contato com ar queimando a pele. Perde-se a sensibilidade na ponta do nariz e as orelhas ficam tão geladas que dá a impressão que iriam se partir como um cristal de gelo se alguém desse um estalo com o dedo. Na Rússia, até uma certa temperatura, a vida transcorre normalmente, as pessoas vão ao trabalho e os estudantes às escolas e universidades, ninguém deixa de fazer nada por causa do frio. Quando a temperatura desce aos vinte graus negativos, os alunos da primária ficam em casa. Com o meu filho, eu controlava a temperatura com o auxílio de um termômetro do lado de fora da janela, pois, apesar do inverno, aconselha-se que as crianças pequenas passeiem todos os dias, para reforçar a imunidade contra os vírus da estação. Até os dezesseis graus negativos, se não estivesse a ventar, eu podia levá-lo a passear por umas duas horas, sem problema, que era o recomendado pelas autoridades sanitárias.
Nos anos que vivi em Moscou, houve alguns invernos mais rigorosos em que a temperatura desceu aos 30-35 graus negativos e por aí manteve-se, umas duas semanas, o que era realmente muito frio. Nestas ocasiões, era grande o risco de congelamento das canalizações de gás da rede de aquecimento central, o que podia provocar rupturas no abastecimento de energia. O reveillon de 1979 foi um dos mais frios do século na Rússia, quando a temperatura desceu aos 42 graus negativos. Nessa ocasião, dezenas de quarteirões em Moscou ficaram sem energia durante umas duas semanas. Eu conheci uma família que me disse que, naqueles dias, tiveram que dormir todos juntos na mesma cama, cheios de cobertas e vestidos com as pesadas roupas de inverno, botas e chapkas incluídas. Por causa do frio, sem poder preparar nada para comer, com qualquer xícara de chá quente congelando em poucos minutos, a família teve que se alimentar de produtos enlatados até que a avaria fosse consertada. Tomar banho, então, foi coisa que ninguém cogitou.
Sunday, November 06, 2005
O planeta vermelho
Uma coisa que todo soviético nunca deixou de perguntar, quando conhecia um estrangeiro, era se realmente a União Soviética era o país mais avançado do mundo e se os seus cidadãos tinham mesmo um nível de vida superior aos do ocidente, como o regime apregoava. E foi esta uma questão sempre difícil, pois o país dos sovietes era uma experiência ao mesmo tempo extraordinária e aterrorizante. Ao custo de milhões de mortos vítimas da coletivização forçada imposta nos anos 30, os burocratas do partido único haviam construído um país gigantesco, segunda potência mundial desde o final da segunda grande guerra até finais dos anos 80, quando caiu o muro de Berlim, e o único exército no planeta com arsenal bélico capaz de rivalizar com os Estados Unidos. Isto sem falar que os russos competiram de igual para igual com os americanos na corrida ao espaço, enviando os primeiros seres vivos à órbita da Terra, a cadela Laika e o astronauta Iuri Gagarin, tendo introduzido novas palavras no cotidiano do cidadão ocidental, como Sputnik (o satélite que em russo significa “companheiro de caminho”, neste caso, companheiro de caminho do nosso planeta) e Soyus (as naves soviéticas, traduzidas à letra, a palavra “união”).
Mas apesar de tudo, da grande crise que sobreveio à dissolução da URSS, os soviéticos não viviam mal naquele início da década de 80. Moscou é o que se poderia chamar “o paraíso da classe média”. Havia extensas filas e carência de gêneros de primeira necessidade porque o poder aquisitivo da população era elevado. A grande verdade é que os soviéticos não tinham onde gastar o seu dinheiro. Havia famílias do interior que trabalhavam durante anos para juntar milhares de rublos e fazer compras numa viagem à capital. Em geral, estes viajantes queriam comprar o que não encontrariam no lugar onde viviam, nos confins do império. Aparelhagens de som, televisores e roupas de origem estrangeira eram os artigos mais procurados. A custa dos subsídios generosos, que viriam a se revelar fatais para a economia estatizada da ex-URSS, a produção nacional era baratíssima. Montar uma casa não custava muito. Móveis e eletrodomésticos, desde que fossem fabricados no país, custavam preços irrisórios para o bolso de um cidadão médio soviético. O ensino era todo subsidiado. Enquanto estudante de medicina, Zau pôde comprar todos aqueles álbuns de anatomia para o seu curso a preços módicos, em edições mais modestas que as suas congêneres ocidentais, mas de igual valia para o estudante. Muito acessíveis também eram as famosas máquinas fotográficas Zenith, assim como o material para a prática caseira da fotografia. O único senão é que não havia controle de qualidade na indústria soviética e para comprar uma simples lente era necessário procurar uma que não tivesse uma bolha muito grande no vidro.
Os salários dos trabalhadores soviéticos eram bastante elevados. Um motorista de ônibus recebia 300 rublos por mês enquanto um trabalhador das minas de carvão chegava aos 600 rublos. Por paradoxal que seja, médicos e professores universitários recebiam cerca de 150 rublos por mês, o mesmo que uma calça jeans alcançava no mercado paralelo. Cá em baixo, estávamos nós, os estudantes da preparatória, que recebiam 80 rublos de bolsa. No primeiro ano da universidade, o estipêndio subiria para 90 rublos. Esta tabela salarial soviética foi construída a partir de um dos postulados marxistas, o de que a mais valia de uma sociedade é produzida pela classe operária. O sistema soviético atribuía um salário conforme a participação de cada classe social na produção da riqueza do país. Os mineiros desciam ao interior da terra para, com o seu trabalho, sustentar a indústria siderúrgica, base da economia socialista, logo recebiam mais pelo seu trabalho. Esta era a lógica que determinava os pisos salariais e que causou sempre grande insatisfação nos meios acadêmicos. No contato com os estrangeiros, os médicos eram os que mais manifestavam a sua mágoa contra o sistema, que lhes fazia ter bem menos poder aquisitivo que um trabalhador qualificado. Hoje em dia, a situação não mudou muito. Engenheiros, cientistas, médicos e professores vivem no limiar da pobreza. A classe alta da nova sociedade surgida com a derrocada do comunismo, um capitalismo selvagem com uma estrutura baseada na máfia siciliana, são os políticos, militares, seguranças privados e homens de negócios quase sempre escuros.
O salário do secretário-geral do PCUS rondava os 800-900 rublos mensais, calculavam alguns amigos moscovitas, razoavelmente bem informados. Por seu turno, um marechal do exército ou um cientista de área estratégica poderiam receber até dois mil rublos por mês, o que não significava que os seus rendimentos fossem maiores que os da classe que governava o país. Havia uma elite soviética habituada a regalias de consumo a que a grande maioria da população não tinha acesso. Para satisfazer estes ímpetos capitalistas da classe dirigente, havia as chamadas lojas especiais, cujo acesso somente era possível com a devida credencial. No centro da capital soviética, a 200 metros do Kremlin, uma fila dupla de carros Volga, negros e brilhantes, denunciava a proximidade de um estabelecimento destes. Da entrada de um prédio, saíam famílias com pacotes que colocavam nos porta-bagagens das viaturas estacionadas, à espera de levá-las para casa. O mais curioso é que junto à entrada do então secreto edifício, havia (e provavelmente ainda há) uma placa com as inscrições “Na sacada deste prédio, em 19 de abril de 1919, Vladimir Ilitch ‘Lênin’ falou aos comandantes do Exército Vermelho antes da partida para a frente de combate da Guerra Civil”. Misha, um judeu moscovita e um dos primeiros amigos fora da Lamumba, foi quem me mostrou a casa pela primeira vez e explicou que aquela loja era destinada aos membros do comitê-central do PCUS e suas famílias.
Toda uma cadeia de lojas semelhantes abastecia a elite soviética naqueles tempos. Caviar, salmão fumado, frutas tropicais, roupas de marca ocidentais, vodka para exportação, frutas e hortaliças frescas todo o ano eram artigos que não existiam nas prateleiras do cidadão comum e que faziam a diferença no orçamento das famílias, para além de outros privilégios. No entanto, as regalias eram distribuídas consoante a posição no aparelho de poder soviético. Os membros do poderoso comitê central do PCUS - cerca de duas mil pessoas - ministros e altos quadros do Soviet Supermo, o parlamento, recebiam mensalmente uma ração do Kremlin, que dava para alimentar com extravagância os seus familiares. Marechais e almirantes soviéticos, cientistas famosos, heróis do socialismo altamente condecorados, astronautas, escritores galardoados com o Prêmio Lênin, diretores de jornais importantes como o Pravda (verdade, em russo), o Izvestia (notícia), cantores famosos e estrelas do balê faziam parte da elite soviética e tinham também as suas lojas especiais, assim como os funcionários médios do partido, oficiais do ministério da defesa, e a polícia secreta também tinham as suas lojas, mas com menos artigos de luxo e importados, porém mais caros que nas lojas dos seus superiores. Os velhos bolcheviques que pertenciam ao partido desde os anos 30 também recebiam uma cesta básica especial, que eram escalonadas segundo a importância de cada um. Por toda Moscou, havia uma infinidade de estabelecimentos variados, desde lavanderias a salões de beleza, que serviam a uma clientela selecionada.
Tolik, um guitarrista russo que estudou comigo anos mais tarde, me contou que, antes de ter ingressado na escola de música, trabalhou num destes estabelecimentos secretos, só que mais dedicado aos prazeres mundanos. O meu amigo contou-me que foi a época em que mais ganhou dinheiro na vida e que durante dois anos recebeu cerca de 3 mil rublos mensais tocando numa casa de meninas para membros do partido e operacionais do KGB. A casa noturna funcionava num restaurante nas cercanias de Moscou e tinha uma placa que dizia “estabelecimento fechado” eternamente dependurada à entrada. Alguns clientes chegavam a pagar 100 rublos por cada música tocada pelo grupo em que meu amigo participava. Tolik trabalhou neste lugar até que a casa foi descoberta e fechada durante a razia que Iuri Andropov empreendeu no início dos anos 80, numa tentativa algo desesperada de fazer o sistema funcionar com o apoio das forças policiais. O antigo chefe do KGB do Leonid Brejnev mandara a sua polícia secreta proceder a blitzes em filas de lojas pela cidade de Moscou para detetar quem estava trabalhando ou não, já que muita gente se furtava ao trabalho, que era obrigatório. Provavelmente, terá se cansado das estrepolias do seu antecessor, cujo mandato ficou conhecido como a “era da estagnação”, um período em que a economia não saía do lugar e proliferavam os privilégios e mordomias da casta que comandava o império.
Os analistas ocidentais bem tentaram calcular a exata dimensão da elite soviética. Num país com uma população de 280 milhões de habitantes, houve que apontasse a cifra de um milhão de pessoas fazendo parte da elite, o que, incluindo os familiares, daria vários milhões. Em comparação aos países ocidentais, a distribuição de renda na antiga União Soviética era de longe mais bem equilibrada. O fosso entre pobres e ricos nos Estados Unidos da América era muito maior que o fosso entre a classe trabalhadora na URSS e suas elites. É verdade que havia descontentamento entre os soviéticos, sobretudo entre aqueles que haviam cursado o ensino superior, médicos, engenheiros, professores universitários, em suma, pessoas que se enquadrariam na chamada intelligentsia. Mas é também verdade que os soviéticos aceitavam que os dirigentes do país vivessem melhor que a maioria, afinal esta era uma tradição que vinha da Rússia Imperial. De qualquer forma, apesar de uma minoria viver melhor que a imensa maioria da população, naquele tempo, a vida em Moscou era extremamente barata. Os aluguéis dos apartamentos rondavam os seis, sete rublos por mês, incluindo água, luz e aquecimento das moradias, o que não era pesado no orçamento das famílias, onde era impensável que um dos cônjuges não trabalhasse. As mulheres faziam os mesmos trabalhos que os homens, como conduzir transportes pesados ou trabalhar na construção civil, e tinham o mesmo poder aquisitivo e status social.
Os transportes eram então a verdadeira maravilha da antiga União Soviética. O preço do bilhete do transporte urbano não custava mais que cinco kopeks. As viagens de trem ou avião também eram baratíssimas. Para nós, estrangeiros, que tínhamos acesso a divisas estrangeiras, os preços das viagens internacionais saíam por uma ninharia. Na primeira vez que voltei ao Brasil, três anos mais tarde, o bilhete de ida e volta a Buenos Aires custou pouco mais de 2 mil rublos, cerca de 300 dólares no câmbio negro. Para viajar de trem, ida e volta até Berlim, pagava-se 90 rublos, pouco mais de dez dólares.
Antes da perestroika, as únicas lojas, supermercados e restaurantes que havia eram de propriedade do estado. Paralelamente ao grande e único negócio do poder soviético, que comandava todas as áreas da economia, existia entretanto uma outra economia informal, que abastecia o desejo mortal dos cidadãos soviéticos em adquirir objetos de consumo fabricados nos países ocidentais. Isto porque a qualidade da indústria soviética deixava muito a desejar. É paradoxal que a União Soviética fosse o país que mais produzisse calçado no planeta e que esse encalhasse nas prateleiras das lojas estatais. O estado permitia a revenda de artigos usados n os chamados “komissioni magazini”, onde se entregava o que se queria vender e o produto era então colocado na vitrina. Este locais eram muito movimentados e as suas redondezas eram mercados clandestinos, onde se vendiam sobretudo artigos importados. A polícia tentava exercer alguma vigilância, mas era difícil controlar a multidão. Os grandes casacos usados no inverno russo ocultavam as transações. Era um mercado de usados e os soviéticos não se importavam de comprar em segunda mão, inclusive vestuário. Muitas vezes, chegavam a oferecer um bom punhado de rublos pelos tênis ou o casaco que eu levava vestido. Os moscovitas abordavam com naturalidade os estrangeiros nas ruas, oferecendo-se para comprar qualquer coisa, um lenço que fosse, propondo muitas vezes conseguir em troca artigos soviéticos difíceis de encontrar, como caviar ou vodka para exportação.
O dilema maior da economia soviética eram os chamados planos quinquenais, onde eram estabelecidas metas nas várias áreas de atividade por um período de cinco anos. A indústria tratava de cumprir o plano estabelecido, atingindo as quotas previstas de produção, e ignorava as reais necessidades de consumo da população. Este desequilíbrio entre a oferta estatal de bens e serviços e a procura de parte do consumidor soviético levava a situações caricatas. Em 1984, ano em que Zau e eu casamos na embaixada brasileira em Moscou, havia excesso na oferta de frigoríficos mas não se podia comprar papel higiénico, um produto que naquela época era chamado de “deficitário”. No seu lugar, utilizávamos guardanapos de papel, até que, alguns anos mais tarde, já havia papel higiênico nas lojas do estado, em grandes quantidades, sem que se recorressem às filas para saciar a demanda, enquanto que, para adquirir um frigorífico, era preciso esperar meses. Para perceber como a produção planificada da economia, centralizada nas mãos do estado, abastecia de modo irregular o mercado soviético, imaginemos um diretor de fábrica de bolachas que tem que cumprir as metas impostas, por um período de cinco anos, para não correr o risco de vir a ser apeado do posto que ocupa. Em virtude dos resultados serem calculados em rublos, ou seja, o ministério estabelecia um limite orçamental para a produção, o plano era considerado cumprido quando se tinha gasto o dinheiro previsto. Numa situação destas, as fábricas de bolacha produziam muito mais bolachas doces, que aumentavam o seu custo por causa do açúcar, e as bolachas salgadas desapareciam das prateleiras em um ou dois anos. Até o próximo plano quinquenal, os soviéticos eram obrigados a comer somente bolachas doces.
Os produtos sumiam das prateleiras e ninguém sabia prever quando e onde apareceriam novamente. No interior, entre os artigos deficitários contabilizava-se a carne e, em muitos lugares, só se podia comprar chouriço e mortadela, principalmente no inverno. Por isso, milhares de pessoas viajavam diariamente a Moscou para comprar carne, frutas e hortaliças frescas ou derivados do leite, como o requeijão, o “tvôrag”, que nos últimos anos do comunismo viria a desaparecer por completo. Naquela época, os moscovitas diziam que a população flutuante diária da sua capital chegava ao milhão. Moscou e Leningrado eram as duas principais cidades, com muitos estrangeiros, e tinham um abastecimento privilegiado de produtos provenientes dos países do Leste Europeu ou das repúblicas bálticas, de melhor qualidade, e que eram colocados sem aviso prévio nas lojas. Tênis tchecoslovacos ou chineses, vestidos com muito melhor corte da Polônia, mel ou batatas provenientes de Cuba, laranjas do Marrocos, bananas do Equador, ameixas secas da antiga Iugoslávia apareciam como que do nada. Para não serem apanhadas de surpresa, as donas-de-casa soviéticas andavam sempre com uma sacola de plástico. As novidades eram também vendidas na rua e, de repente, um caminhão estacionava, três ou quatro homens descarregavam alguns caixotes, uma mulher tomava conta da balança e do caixa improvisado, formando-se logo uma imensa fila de compradores. Os homens também participavam na jornada diária das compras e colocavam os artigos que compravam nas pastas 007 que geralmente traziam consigo. A princípio, podia-se pensar que os moscovitas eram todos funcionários de escritório, carregando para todo lado a sua pasta executiva cheia de papéis, numa imensa sociedade “orwelliana”*. Mas, na maior parte das vezes que vi alguém abrir uma pasta destas, no metrô ou nalguma praça, foi para sacar de lá uma garrafa de vodka e um sanduíche de mortadela.
As filas eram uma instituição na antiga União Soviética. Se alguma se formava, era sinal de que o que estava à venda era algo que se podia comprar. E as pessoas entravam numa fila sem ao menos perguntar que produto era comercializado, o que talvez até nem valesse à pena, pois muitas vezes ninguém saberia até se aproximar do vendedor, o que poderia levar horas. Muitas vezes, as pessoas adquiriam algo que não precisavam realmente, mas havia que aproveitar a ocasião, comprar logo vários artigos não fosse algum parente ou conhecido necessitar. Para não desperdiçar as bagatelas, os russos andavam sempre com muito dinheiro no bolso. Muitos não se furtavam de vender à porta do magazine, com ágio, os produtos que mal havia comprado. As filas na União Soviética tinham um regulamento tácito, que à partida as pessoas respeitavam. Podia-se marcar um lugar na fila e voltar mais tarde. Porém, este regra funcionava se houvesse cumplicidade entre os integrantes de uma fila. Se o produto à venda fosse demasiado valioso, havia quem não gostasse desse sistema e reclamasse. Mas em se tratando de pepinos ou leite, não havia muita discussão. Nos grandes espetáculos de música ou de teatro, as filas formavam-se com dias de antecedência para comprar os poucos bilhetes que eram postos à venda. Nestes casos, elaborava-se uma lista por escrito das pessoas que iam chegando e uma pessoa ou mais se encarregava de pernoitar na bilheteria em representação das pessoas daquela lista.
Nas primeiras visitas às lojas estatais soviéticas, a impressão era de que havia alguma fartura, porque havia muita coisa exposta nas prateleiras e vitrinas. Sensação esta que se desvanecia ao se criar uma rotina de vida na grande metrópole. Descobria-se que fazer as compras era um exercício diário e penoso de cerca de duas a três horas. Levar leite, pão, queijo e chá para casa não era uma tarefa rápida e significava entrar em várias filas para se conseguir o almejado. Numa loja normal de bairro, um “magazin”, como se diz em russo, havia sempre uma ou duas caixas trabalhando. Os queijos, a manteiga, o leite, o chouriço e as mortadelas, o açúcar e o chá, cada um destes produtos era vendido em um balcão diferente. Saíamos da caixa registradora com vários tickets na mão e muitas filas pela frente. Aqui é que o jeitinho de marcar um lugar na fila dava jeito, sobretudo se falássemos um bom russo. O queijo e a manteiga eram vendidos a granel e cada vendedora pesava antes de o entregar. Eram setores onde sempre se esperava um bom bocado. Às vezes tínhamos primeiro que pesar o queijo, dependendo do espírito da mulher que atendia, e depois irmos ao caixa tirar o ticket, o que me fazia tentar contabilizar qual dos dois métodos era menos cansativo, mas nunca cheguei a uma conclusão. Os russos contavam que havia grupos de adolescentes que, para troçar da situação, formavam filas na brincadeira, em locais públicos, e depois se afastavam, divertindo-se ao ver a multidão que entretanto se formara.
Uma vez, Zau, eu e Kitty, uma amiga da República Dominicana, fomos a uma pizzaria perto da Biblioteca Lênin. No hall de entrada, um homem que parecia ser o gerente disse-nos que o tempo de atendimento médio era de 40 minutos. Para nós, que já estávamos habituados, pareceu-nos normal. Era inverno, nevava lá fora e queríamos nos aquecer e comer qualquer coisa. Enquanto deixávamos os casacos no bengaleiro, uma senhora russa entra e o gerente repete-lhe o que nos havia dito. A mulher diz que não pode esperar e regressa à rua. Entramos e estranhamos, pois a pizzaria estava praticamente vazia. Kitti até comentou, com aquele seu tom peculiar: “Coño!, que a esta gente nos les gusta trabajar!”. Pois passaram dez minutos e tínhamos as pizzas em cima da mesa. Ficamos espantados. O gerente espantava os clientes para não ter que trabalhar. O seu salário estava garantido no final do mês e, pelos vistos, não estava interessado no futuro do negócio. Provavelmente teria conseguido o seu cargo de diretor por indicação partidária e a vida não lhe corria mal. Na maior parte das vezes, tínhamos que aguardar do lado de fora de alguma pizzaria ou casa de chá para sermos atendidos, pois havia poucos estabelecimentos do gênero, como era de se esperar numa grande metrópole como Moscou. No inverno, foram muitas as ocasiões em que enfrentamos condições climatéricas bastante adversas para tomar um chá com bolachas.
Nos restaurantes e pizzarias, não podíamos nos sentar onde quiséssemos. Quem distribuía os lugares era a garçonete, com o seu ar superior e face avermelhada. Não se podia ocupar uma segunda mesa enquanto houvesse um lugar vago na primeira. Ao cidadão comum, não restava outra coisa a não ser resignar-se com a falta de privacidade. Uma boa recepção dependia também do funcionário. Em geral, as pessoas que trabalhavam na área dos serviços eram mal humoradas, mas, quando se apercebiam de que éramos estrangeiros, chegavam a ser bastante amáveis. Com o cidadão comum, costumavam ser implacáveis, donos do pedaço, grosseiros inclusive. Frequentemente vi senhoras perguntarem numa loja à mulher sentada atrás do balcão o preço de alguma coisa e esta não responder bulhufas, nem um pio. Certa vez, enquanto eu olhava a vitrina de um balcão, uma dona-de-casa fartou-se de não ser ouvida e disse alto, com uma entonação que não esqueci: “A senhora fala russo?”, expressão que memorizei, com o mesmo sotaque moscovita da senhora, e utilizei inúmeras vezes nos anos seguintes. Os meus cabelos compridos certamente assustavam as mulheres, pois elas acordavam da sua letargia, não fosse eu filho de algum membro do comitê central do PCUS, autorizado a andar vestido à ocidental.
Quando chegamos a Moscou, naquele ano de 1983, o maior bem que um consumidor soviético podia se dar ao luxo de adquirir era um gravador de cassetes duplo, com relógio e equalizador. No mercado-negro, o seu preço ascendia aos 2 mil rublos, uma pequena fortuna. Me recordo de ver numa vitrina na avenida Lênin, numa das primeiras explorações feita aos arredores da universidade, o primeiro leitor de vídeo-cassete da URSS, apresentado como um trunfo da indústria do país na sua luta ideológica contra o ocidente. O aparelho em exposição não estava, no entanto, à venda, e o simples cidadão só podia comprar um sob encomenda. Ter carro em Moscou era também um luxo para poucos. O modelo mais econômico não saía por menos de 15 mil rublos e era preciso esperar meses ou anos. Ser membro do PCUS ou ter algum amigo filiado no partido único da ex-União Soviética podia fazer com que esta espera fosse menor.
As famosas lojas Berioskas eram as únicas lojas em que se vendiam artigos importados em divisas estrangeiras. Com acesso restrito a estrangeiros e soviéticos ligados ao corpo diplomático, este modelo seria encontrado em todos os países de modelo de gestão comunista, incluindo Cuba, Angola e Moçambique. Os estudantes estrangeiros aproveitavam para aumentar o seu magro orçamento comprando artigos e revendendo-as aos amigos soviéticos. Geralmente, as vendas eram feitas no círculo de amigos ou a algum colega de residência estudantil comprador de muamba, geralmente um soviético com contatos fora da residência. Os estudantes africanos que recebiam dólares das suas embaixadas tornavam-se verdadeiros homens de negócio com o passar dos anos. Nem todos porém recebiam ajuda externa e, pouco a pouco, a universidade dividia-se entre aqueles que tinham dinheiro e os que não tinham. Nestas lojas, também eram aceites os chamados “rublos certificados”, dado a cidadão soviéticos que haviam cumprido alguma missão de serviço no estrangeiro, como diplomatas, atletas ou bailarinos do Teatro Bolshoi.
A instituição maior da economia paralela soviética, surgida pela incapacidade do estado em produzir bens de consumo duráveis, era a propina. Esta era uma situação absolutamente normal, que não causava constrangimento a nenhuma das parte envolvidas. O diretor de uma loja de produtos alimentares do estado vendia 90 por cento do estoque pela porta dos fundos, a quem pagasse mais, e colocava o resto na prateleira. Nos açougues, a carne em exposição era da pior qualidade, só guisado de segunda. O filet mignon era vendido a conhecidos, que não se importavam de pagar mais pelo produto. Nas conversas entre amigos, era comum que alguém se gabasse de ter um amigo diretor de loja do estado, que conseguia este ou aquele produto difícil de encontrar. Com exceção dos mais fanáticos, todo funcionário público recebia algum por fora para fazer o seu trabalho mais rapidamente. Um bom presente comprado numa loja para estrangeiros fazia com que qualquer processo não fosse parar ao alto da lista dos papéis.
Apesar do monopólio estatal na produção e distribuição, os agricultores soviéticos podiam comercializar parte das suas colheitas em mercados onde os preços fugiam ao controle do estado. Estes mercados existiam um pouco por toda a parte e colmatavam as graves lacunas no fornecimento de bens perecíveis. Carne de boa qualidade, enchidos e conservas, grande variedade de frutas frescas e secas, legumes e verduras que jamais eram vistos nas lojas oficiais comprovavam que na ex-URSS afinal podia se comprar qualquer coisa, era tudo uma questão de poder aquisitivo. Os agricultores de outras repúblicas mais favorecidas pelos sol, como o sul da Ucrânia ou a Moldávia, voavam diariamente às capitais do império para colocar os seus produtos à venda nos mercados privados.
O clima solarengo da então república soviética da Moldávia fazia daquela diminuta porção de terra, historicamente ligada ao território da atual Romênia, uma das repúblicas mais ricas da antiga União Soviética. Os seus habitantes tinham um nível de vida superior ao das demais repúblicas em virtude das boas e variadas colheitas que as suas terras proporcionavam. Nas primeiras férias de verão, em agosto de 1984, tive a oportunidade de contatar in loco esta realidade. Os moldavos dedicavam-se ao seu próprio cultivo e as plantações do estado estavam abandonadas. Os mercados tinham grande variedade de frutas e legumes, ovos e produtos lácteos, mas nem uma alface havia sido plantada em uma cooperativa do estado. Na capital da Moldávia, que naquele tempo se chamava Kishiniov, as frutas custavam barato mas em Moscou, a milhares de quilómetros de distância, meia dúzia de pêssegos não saíam por menos de 5 rublos, vinte vezes mais caros que numa loja do estado, mas de muito melhor qualidade. Os mercados eram o único lugar onde se podia comprar produtos de qualidade e sem filas, sendo que muitos moscovitas naquela época já podiam dar-se ao luxo de frequentá-los com alguma assiduidade.
Com base na teoria do internacionalismo, formulada por Vladimir Lênin, os governos soviéticos que se sucederam ao longo dos anos procuraram fazer com que os cidadãos soviéticos das muitas nacionalidades da ex-URSS fizessem parte de uma cultura comunista homogênea, conservando ao mesmo tempo as suas identidades nacionais, as suas tradições e, principalmente, os seus idiomas. Como resultado desta política, o analfabetismo foi erradicado e foram criados os alfabetos e as gramáticas de quase centena e meia de diferentes nacionalidades e povos. A partir daí, os estudantes soviéticos sempre puderam optar entre cursar uma faculdade em russo ou na sua própria língua. As ciências naturais obtiveram resultados notáveis, destacando-se as áreas da física e da química. No entanto, com a política de fazer com que todos os aspectos da cultura refletissem o universo da luta de classes e fomentassem a revolução comunista, a literatura, as belas-artes e também a ciência sofreram com as restrições impostas pela idéia de que os valores políticos podem condicionar os conceitos artísticos ou científicos.
Com Lênin ainda vivo, o modernismo russo viveu ainda uma era dourada, mas a invenção do “realismo socialista” como uma corrente estética viria a estabelecer limites para os artistas soviéticos. Na música, o jazz foi proibido por ser considerado “uma manifestação burguesa” - quando sempre foi uma música dos negros norte-americanos. O mesmo argumento serviu para que a cibernética fosse banida das universidades, o que fez com que a ex-URSS registrasse um grande atraso em relação aos países ocidentais quando se deu a “revolução informática” nos anos 90 do século passado. Como consequência, muitos cientistas ou escritores foram “banidos” e internados em hospitais psiquiátricos ou campos de trabalho forçado. Muitos se tornaram famosos do lado de cá da cortina de ferro, como o físico nuclear Andrei Sakharov ou os escritores Aleksandr Soljenisin e Boris Pasternack.
No país dos sovietes*, apesar do regime vigente se auto-intitular de “ditadura do proletariado”, o que vigorou sempre foi a ditadura da burocracia. Um fenômeno, aliás, identificado pelo próprio pai da revolução, Vladimir Lênin, no seu testamento, o de que o aparelho de estado havia sido tomado pelos pequenos funcionários do partido, originando uma nova classe dominante, a nomenklatura. Aquando da subida dos bolcheviques* ao poder, Lênin logo percebeu que não conseguiria conduzir um país sem especialistas e tratou de pagar bons salários aos quadros que eram oriundos do antigo regime, para que estes não abandonassem a nova nação. A convivência entre a antiga classe média do czarismo e os comunistas não foi nada pacífica, como nos relata o célebre romance de Pasternack, Doutor Jivago*, eternizado pelas telas de cinema. A nova classe dirigente da Rússia tratou de moldar o sistema segundo os seus interesses de eternização no poder, surgindo uma nova intellingentsia, que adotou a burocracia como ciência e filosofia de estado. O procedimento burocrático impregnou a sociedade toda a partir daí e a teia de relações da nova elite. Iussef Stálin, um burocrata que não teve a menor participação nos grandes feitos das revolução de 1917, foi o precursor do culto à personalidade, que muitos revolucionários por este mundo afora iriam copiar quando ocuparam a cadeira do poder.
Uma dos grandes feitos apontados pelos comunistas soviéticos era a figura do pleno emprego. De fato, uma pessoa podia demitir-se de uma fábrica e arranjar emprego no outro quarteirão. Não havia estabelecimento, comercial ou industrial, que não tivesse uma placa enferrujada a anunciar a admissão de trabalhadores. Só que, na economia estatizada soviética, onde tudo era de todos e nada era de ninguém, um imenso funcionalismo público, os níveis de produtividade eram baixíssimos. Um operário de uma fábrica metalúrgica que ganhasse 300 rublos por mês tinha o seu salário garantido fizesse ele 30 ou apenas 1 detalhe por dia de trabalho. O mais normal, entre um gole e outro de vodka, era fazer meio detalhe. Esta situação da economia soviética já tinha sido constatada por analistas ocidentais desde os anos 60, quando começou o chamado “período de estagnação da era Brejnev”, assim descrito pelos cientistas políticos da era Garbatchov.
Na verdade, foi Nikita Krushev quem percebeu que a economia soviética não conseguia competir com a do ocidente, mas a sua inabilidade nos assuntos econômicos e a sua maneira atabalhoada de ser fizeram com que fosse apeado pela linha dura do partido, que não havia gostado que os crimes do ditador Stálin tivessem sido expostos ao mundo no XX congresso do PCUS em 1956. Leonid Brejnev e o seu círculo não conseguiram colocar a economia nos trilhos, mas fizeram o possível para manter as aparências a nível interno. No plano internacional, foi o que se viu. A URSS alinhou na corrida armamentista do presidente norte-americano Ronald Reagan e foi obrigada a jogar a toalha no tapete.
Assim que, quando cheguei em Moscou em 1983, o gigante comunista não passava de um império semi-paralisado, vivendo das exportações de petróleo e do gás natural da Sibéria e com um parque industrial onde nove em cada dez empresas davam prejuízo. Alguns anos passariam ainda antes que um jovem (para os padrões soviéticos) secretário-geral do PCUS considerasse que era a hora de fazer alguma coisa. Michail Garbatchov andava ainda na universidade quando se deu a chamada “primavera krucheviana”, época em que o jazz deixou de ser proibido e os setores progressistas do PCUS tentaram dar um rosto mais humano ao comunismo. O último líder da URSS protagonizou a maior reviravolta cultural no país, a perestroika, criando um clima de liberdade de expressão inédito, ao mesmo tempo que quis implantar as bases para uma reforma gradual da economia e a sua conversão para a economia de mercado, mas com um cariz socialista. O que Garbatchov fez foi nada mais nada menos que aplicar a NEP - Nova Política Econômica, criada por Lênin, nos anos 20, quando este se apercebeu da quebra da produção na sequência da centralização da economia nas mãos do estado. A NEP consistia na liberação da atividade do pequeno comércio e das profissões liberais, de modo a combater a escassez de gêneros de primeira necessidade e serviços primários que assolava a então jovem nação comunista.
Mas apesar de tudo, da grande crise que sobreveio à dissolução da URSS, os soviéticos não viviam mal naquele início da década de 80. Moscou é o que se poderia chamar “o paraíso da classe média”. Havia extensas filas e carência de gêneros de primeira necessidade porque o poder aquisitivo da população era elevado. A grande verdade é que os soviéticos não tinham onde gastar o seu dinheiro. Havia famílias do interior que trabalhavam durante anos para juntar milhares de rublos e fazer compras numa viagem à capital. Em geral, estes viajantes queriam comprar o que não encontrariam no lugar onde viviam, nos confins do império. Aparelhagens de som, televisores e roupas de origem estrangeira eram os artigos mais procurados. A custa dos subsídios generosos, que viriam a se revelar fatais para a economia estatizada da ex-URSS, a produção nacional era baratíssima. Montar uma casa não custava muito. Móveis e eletrodomésticos, desde que fossem fabricados no país, custavam preços irrisórios para o bolso de um cidadão médio soviético. O ensino era todo subsidiado. Enquanto estudante de medicina, Zau pôde comprar todos aqueles álbuns de anatomia para o seu curso a preços módicos, em edições mais modestas que as suas congêneres ocidentais, mas de igual valia para o estudante. Muito acessíveis também eram as famosas máquinas fotográficas Zenith, assim como o material para a prática caseira da fotografia. O único senão é que não havia controle de qualidade na indústria soviética e para comprar uma simples lente era necessário procurar uma que não tivesse uma bolha muito grande no vidro.
Os salários dos trabalhadores soviéticos eram bastante elevados. Um motorista de ônibus recebia 300 rublos por mês enquanto um trabalhador das minas de carvão chegava aos 600 rublos. Por paradoxal que seja, médicos e professores universitários recebiam cerca de 150 rublos por mês, o mesmo que uma calça jeans alcançava no mercado paralelo. Cá em baixo, estávamos nós, os estudantes da preparatória, que recebiam 80 rublos de bolsa. No primeiro ano da universidade, o estipêndio subiria para 90 rublos. Esta tabela salarial soviética foi construída a partir de um dos postulados marxistas, o de que a mais valia de uma sociedade é produzida pela classe operária. O sistema soviético atribuía um salário conforme a participação de cada classe social na produção da riqueza do país. Os mineiros desciam ao interior da terra para, com o seu trabalho, sustentar a indústria siderúrgica, base da economia socialista, logo recebiam mais pelo seu trabalho. Esta era a lógica que determinava os pisos salariais e que causou sempre grande insatisfação nos meios acadêmicos. No contato com os estrangeiros, os médicos eram os que mais manifestavam a sua mágoa contra o sistema, que lhes fazia ter bem menos poder aquisitivo que um trabalhador qualificado. Hoje em dia, a situação não mudou muito. Engenheiros, cientistas, médicos e professores vivem no limiar da pobreza. A classe alta da nova sociedade surgida com a derrocada do comunismo, um capitalismo selvagem com uma estrutura baseada na máfia siciliana, são os políticos, militares, seguranças privados e homens de negócios quase sempre escuros.
O salário do secretário-geral do PCUS rondava os 800-900 rublos mensais, calculavam alguns amigos moscovitas, razoavelmente bem informados. Por seu turno, um marechal do exército ou um cientista de área estratégica poderiam receber até dois mil rublos por mês, o que não significava que os seus rendimentos fossem maiores que os da classe que governava o país. Havia uma elite soviética habituada a regalias de consumo a que a grande maioria da população não tinha acesso. Para satisfazer estes ímpetos capitalistas da classe dirigente, havia as chamadas lojas especiais, cujo acesso somente era possível com a devida credencial. No centro da capital soviética, a 200 metros do Kremlin, uma fila dupla de carros Volga, negros e brilhantes, denunciava a proximidade de um estabelecimento destes. Da entrada de um prédio, saíam famílias com pacotes que colocavam nos porta-bagagens das viaturas estacionadas, à espera de levá-las para casa. O mais curioso é que junto à entrada do então secreto edifício, havia (e provavelmente ainda há) uma placa com as inscrições “Na sacada deste prédio, em 19 de abril de 1919, Vladimir Ilitch ‘Lênin’ falou aos comandantes do Exército Vermelho antes da partida para a frente de combate da Guerra Civil”. Misha, um judeu moscovita e um dos primeiros amigos fora da Lamumba, foi quem me mostrou a casa pela primeira vez e explicou que aquela loja era destinada aos membros do comitê-central do PCUS e suas famílias.
Toda uma cadeia de lojas semelhantes abastecia a elite soviética naqueles tempos. Caviar, salmão fumado, frutas tropicais, roupas de marca ocidentais, vodka para exportação, frutas e hortaliças frescas todo o ano eram artigos que não existiam nas prateleiras do cidadão comum e que faziam a diferença no orçamento das famílias, para além de outros privilégios. No entanto, as regalias eram distribuídas consoante a posição no aparelho de poder soviético. Os membros do poderoso comitê central do PCUS - cerca de duas mil pessoas - ministros e altos quadros do Soviet Supermo, o parlamento, recebiam mensalmente uma ração do Kremlin, que dava para alimentar com extravagância os seus familiares. Marechais e almirantes soviéticos, cientistas famosos, heróis do socialismo altamente condecorados, astronautas, escritores galardoados com o Prêmio Lênin, diretores de jornais importantes como o Pravda (verdade, em russo), o Izvestia (notícia), cantores famosos e estrelas do balê faziam parte da elite soviética e tinham também as suas lojas especiais, assim como os funcionários médios do partido, oficiais do ministério da defesa, e a polícia secreta também tinham as suas lojas, mas com menos artigos de luxo e importados, porém mais caros que nas lojas dos seus superiores. Os velhos bolcheviques que pertenciam ao partido desde os anos 30 também recebiam uma cesta básica especial, que eram escalonadas segundo a importância de cada um. Por toda Moscou, havia uma infinidade de estabelecimentos variados, desde lavanderias a salões de beleza, que serviam a uma clientela selecionada.
Tolik, um guitarrista russo que estudou comigo anos mais tarde, me contou que, antes de ter ingressado na escola de música, trabalhou num destes estabelecimentos secretos, só que mais dedicado aos prazeres mundanos. O meu amigo contou-me que foi a época em que mais ganhou dinheiro na vida e que durante dois anos recebeu cerca de 3 mil rublos mensais tocando numa casa de meninas para membros do partido e operacionais do KGB. A casa noturna funcionava num restaurante nas cercanias de Moscou e tinha uma placa que dizia “estabelecimento fechado” eternamente dependurada à entrada. Alguns clientes chegavam a pagar 100 rublos por cada música tocada pelo grupo em que meu amigo participava. Tolik trabalhou neste lugar até que a casa foi descoberta e fechada durante a razia que Iuri Andropov empreendeu no início dos anos 80, numa tentativa algo desesperada de fazer o sistema funcionar com o apoio das forças policiais. O antigo chefe do KGB do Leonid Brejnev mandara a sua polícia secreta proceder a blitzes em filas de lojas pela cidade de Moscou para detetar quem estava trabalhando ou não, já que muita gente se furtava ao trabalho, que era obrigatório. Provavelmente, terá se cansado das estrepolias do seu antecessor, cujo mandato ficou conhecido como a “era da estagnação”, um período em que a economia não saía do lugar e proliferavam os privilégios e mordomias da casta que comandava o império.
Os analistas ocidentais bem tentaram calcular a exata dimensão da elite soviética. Num país com uma população de 280 milhões de habitantes, houve que apontasse a cifra de um milhão de pessoas fazendo parte da elite, o que, incluindo os familiares, daria vários milhões. Em comparação aos países ocidentais, a distribuição de renda na antiga União Soviética era de longe mais bem equilibrada. O fosso entre pobres e ricos nos Estados Unidos da América era muito maior que o fosso entre a classe trabalhadora na URSS e suas elites. É verdade que havia descontentamento entre os soviéticos, sobretudo entre aqueles que haviam cursado o ensino superior, médicos, engenheiros, professores universitários, em suma, pessoas que se enquadrariam na chamada intelligentsia. Mas é também verdade que os soviéticos aceitavam que os dirigentes do país vivessem melhor que a maioria, afinal esta era uma tradição que vinha da Rússia Imperial. De qualquer forma, apesar de uma minoria viver melhor que a imensa maioria da população, naquele tempo, a vida em Moscou era extremamente barata. Os aluguéis dos apartamentos rondavam os seis, sete rublos por mês, incluindo água, luz e aquecimento das moradias, o que não era pesado no orçamento das famílias, onde era impensável que um dos cônjuges não trabalhasse. As mulheres faziam os mesmos trabalhos que os homens, como conduzir transportes pesados ou trabalhar na construção civil, e tinham o mesmo poder aquisitivo e status social.
Os transportes eram então a verdadeira maravilha da antiga União Soviética. O preço do bilhete do transporte urbano não custava mais que cinco kopeks. As viagens de trem ou avião também eram baratíssimas. Para nós, estrangeiros, que tínhamos acesso a divisas estrangeiras, os preços das viagens internacionais saíam por uma ninharia. Na primeira vez que voltei ao Brasil, três anos mais tarde, o bilhete de ida e volta a Buenos Aires custou pouco mais de 2 mil rublos, cerca de 300 dólares no câmbio negro. Para viajar de trem, ida e volta até Berlim, pagava-se 90 rublos, pouco mais de dez dólares.
Antes da perestroika, as únicas lojas, supermercados e restaurantes que havia eram de propriedade do estado. Paralelamente ao grande e único negócio do poder soviético, que comandava todas as áreas da economia, existia entretanto uma outra economia informal, que abastecia o desejo mortal dos cidadãos soviéticos em adquirir objetos de consumo fabricados nos países ocidentais. Isto porque a qualidade da indústria soviética deixava muito a desejar. É paradoxal que a União Soviética fosse o país que mais produzisse calçado no planeta e que esse encalhasse nas prateleiras das lojas estatais. O estado permitia a revenda de artigos usados n os chamados “komissioni magazini”, onde se entregava o que se queria vender e o produto era então colocado na vitrina. Este locais eram muito movimentados e as suas redondezas eram mercados clandestinos, onde se vendiam sobretudo artigos importados. A polícia tentava exercer alguma vigilância, mas era difícil controlar a multidão. Os grandes casacos usados no inverno russo ocultavam as transações. Era um mercado de usados e os soviéticos não se importavam de comprar em segunda mão, inclusive vestuário. Muitas vezes, chegavam a oferecer um bom punhado de rublos pelos tênis ou o casaco que eu levava vestido. Os moscovitas abordavam com naturalidade os estrangeiros nas ruas, oferecendo-se para comprar qualquer coisa, um lenço que fosse, propondo muitas vezes conseguir em troca artigos soviéticos difíceis de encontrar, como caviar ou vodka para exportação.
O dilema maior da economia soviética eram os chamados planos quinquenais, onde eram estabelecidas metas nas várias áreas de atividade por um período de cinco anos. A indústria tratava de cumprir o plano estabelecido, atingindo as quotas previstas de produção, e ignorava as reais necessidades de consumo da população. Este desequilíbrio entre a oferta estatal de bens e serviços e a procura de parte do consumidor soviético levava a situações caricatas. Em 1984, ano em que Zau e eu casamos na embaixada brasileira em Moscou, havia excesso na oferta de frigoríficos mas não se podia comprar papel higiénico, um produto que naquela época era chamado de “deficitário”. No seu lugar, utilizávamos guardanapos de papel, até que, alguns anos mais tarde, já havia papel higiênico nas lojas do estado, em grandes quantidades, sem que se recorressem às filas para saciar a demanda, enquanto que, para adquirir um frigorífico, era preciso esperar meses. Para perceber como a produção planificada da economia, centralizada nas mãos do estado, abastecia de modo irregular o mercado soviético, imaginemos um diretor de fábrica de bolachas que tem que cumprir as metas impostas, por um período de cinco anos, para não correr o risco de vir a ser apeado do posto que ocupa. Em virtude dos resultados serem calculados em rublos, ou seja, o ministério estabelecia um limite orçamental para a produção, o plano era considerado cumprido quando se tinha gasto o dinheiro previsto. Numa situação destas, as fábricas de bolacha produziam muito mais bolachas doces, que aumentavam o seu custo por causa do açúcar, e as bolachas salgadas desapareciam das prateleiras em um ou dois anos. Até o próximo plano quinquenal, os soviéticos eram obrigados a comer somente bolachas doces.
Os produtos sumiam das prateleiras e ninguém sabia prever quando e onde apareceriam novamente. No interior, entre os artigos deficitários contabilizava-se a carne e, em muitos lugares, só se podia comprar chouriço e mortadela, principalmente no inverno. Por isso, milhares de pessoas viajavam diariamente a Moscou para comprar carne, frutas e hortaliças frescas ou derivados do leite, como o requeijão, o “tvôrag”, que nos últimos anos do comunismo viria a desaparecer por completo. Naquela época, os moscovitas diziam que a população flutuante diária da sua capital chegava ao milhão. Moscou e Leningrado eram as duas principais cidades, com muitos estrangeiros, e tinham um abastecimento privilegiado de produtos provenientes dos países do Leste Europeu ou das repúblicas bálticas, de melhor qualidade, e que eram colocados sem aviso prévio nas lojas. Tênis tchecoslovacos ou chineses, vestidos com muito melhor corte da Polônia, mel ou batatas provenientes de Cuba, laranjas do Marrocos, bananas do Equador, ameixas secas da antiga Iugoslávia apareciam como que do nada. Para não serem apanhadas de surpresa, as donas-de-casa soviéticas andavam sempre com uma sacola de plástico. As novidades eram também vendidas na rua e, de repente, um caminhão estacionava, três ou quatro homens descarregavam alguns caixotes, uma mulher tomava conta da balança e do caixa improvisado, formando-se logo uma imensa fila de compradores. Os homens também participavam na jornada diária das compras e colocavam os artigos que compravam nas pastas 007 que geralmente traziam consigo. A princípio, podia-se pensar que os moscovitas eram todos funcionários de escritório, carregando para todo lado a sua pasta executiva cheia de papéis, numa imensa sociedade “orwelliana”*. Mas, na maior parte das vezes que vi alguém abrir uma pasta destas, no metrô ou nalguma praça, foi para sacar de lá uma garrafa de vodka e um sanduíche de mortadela.
As filas eram uma instituição na antiga União Soviética. Se alguma se formava, era sinal de que o que estava à venda era algo que se podia comprar. E as pessoas entravam numa fila sem ao menos perguntar que produto era comercializado, o que talvez até nem valesse à pena, pois muitas vezes ninguém saberia até se aproximar do vendedor, o que poderia levar horas. Muitas vezes, as pessoas adquiriam algo que não precisavam realmente, mas havia que aproveitar a ocasião, comprar logo vários artigos não fosse algum parente ou conhecido necessitar. Para não desperdiçar as bagatelas, os russos andavam sempre com muito dinheiro no bolso. Muitos não se furtavam de vender à porta do magazine, com ágio, os produtos que mal havia comprado. As filas na União Soviética tinham um regulamento tácito, que à partida as pessoas respeitavam. Podia-se marcar um lugar na fila e voltar mais tarde. Porém, este regra funcionava se houvesse cumplicidade entre os integrantes de uma fila. Se o produto à venda fosse demasiado valioso, havia quem não gostasse desse sistema e reclamasse. Mas em se tratando de pepinos ou leite, não havia muita discussão. Nos grandes espetáculos de música ou de teatro, as filas formavam-se com dias de antecedência para comprar os poucos bilhetes que eram postos à venda. Nestes casos, elaborava-se uma lista por escrito das pessoas que iam chegando e uma pessoa ou mais se encarregava de pernoitar na bilheteria em representação das pessoas daquela lista.
Nas primeiras visitas às lojas estatais soviéticas, a impressão era de que havia alguma fartura, porque havia muita coisa exposta nas prateleiras e vitrinas. Sensação esta que se desvanecia ao se criar uma rotina de vida na grande metrópole. Descobria-se que fazer as compras era um exercício diário e penoso de cerca de duas a três horas. Levar leite, pão, queijo e chá para casa não era uma tarefa rápida e significava entrar em várias filas para se conseguir o almejado. Numa loja normal de bairro, um “magazin”, como se diz em russo, havia sempre uma ou duas caixas trabalhando. Os queijos, a manteiga, o leite, o chouriço e as mortadelas, o açúcar e o chá, cada um destes produtos era vendido em um balcão diferente. Saíamos da caixa registradora com vários tickets na mão e muitas filas pela frente. Aqui é que o jeitinho de marcar um lugar na fila dava jeito, sobretudo se falássemos um bom russo. O queijo e a manteiga eram vendidos a granel e cada vendedora pesava antes de o entregar. Eram setores onde sempre se esperava um bom bocado. Às vezes tínhamos primeiro que pesar o queijo, dependendo do espírito da mulher que atendia, e depois irmos ao caixa tirar o ticket, o que me fazia tentar contabilizar qual dos dois métodos era menos cansativo, mas nunca cheguei a uma conclusão. Os russos contavam que havia grupos de adolescentes que, para troçar da situação, formavam filas na brincadeira, em locais públicos, e depois se afastavam, divertindo-se ao ver a multidão que entretanto se formara.
Uma vez, Zau, eu e Kitty, uma amiga da República Dominicana, fomos a uma pizzaria perto da Biblioteca Lênin. No hall de entrada, um homem que parecia ser o gerente disse-nos que o tempo de atendimento médio era de 40 minutos. Para nós, que já estávamos habituados, pareceu-nos normal. Era inverno, nevava lá fora e queríamos nos aquecer e comer qualquer coisa. Enquanto deixávamos os casacos no bengaleiro, uma senhora russa entra e o gerente repete-lhe o que nos havia dito. A mulher diz que não pode esperar e regressa à rua. Entramos e estranhamos, pois a pizzaria estava praticamente vazia. Kitti até comentou, com aquele seu tom peculiar: “Coño!, que a esta gente nos les gusta trabajar!”. Pois passaram dez minutos e tínhamos as pizzas em cima da mesa. Ficamos espantados. O gerente espantava os clientes para não ter que trabalhar. O seu salário estava garantido no final do mês e, pelos vistos, não estava interessado no futuro do negócio. Provavelmente teria conseguido o seu cargo de diretor por indicação partidária e a vida não lhe corria mal. Na maior parte das vezes, tínhamos que aguardar do lado de fora de alguma pizzaria ou casa de chá para sermos atendidos, pois havia poucos estabelecimentos do gênero, como era de se esperar numa grande metrópole como Moscou. No inverno, foram muitas as ocasiões em que enfrentamos condições climatéricas bastante adversas para tomar um chá com bolachas.
Nos restaurantes e pizzarias, não podíamos nos sentar onde quiséssemos. Quem distribuía os lugares era a garçonete, com o seu ar superior e face avermelhada. Não se podia ocupar uma segunda mesa enquanto houvesse um lugar vago na primeira. Ao cidadão comum, não restava outra coisa a não ser resignar-se com a falta de privacidade. Uma boa recepção dependia também do funcionário. Em geral, as pessoas que trabalhavam na área dos serviços eram mal humoradas, mas, quando se apercebiam de que éramos estrangeiros, chegavam a ser bastante amáveis. Com o cidadão comum, costumavam ser implacáveis, donos do pedaço, grosseiros inclusive. Frequentemente vi senhoras perguntarem numa loja à mulher sentada atrás do balcão o preço de alguma coisa e esta não responder bulhufas, nem um pio. Certa vez, enquanto eu olhava a vitrina de um balcão, uma dona-de-casa fartou-se de não ser ouvida e disse alto, com uma entonação que não esqueci: “A senhora fala russo?”, expressão que memorizei, com o mesmo sotaque moscovita da senhora, e utilizei inúmeras vezes nos anos seguintes. Os meus cabelos compridos certamente assustavam as mulheres, pois elas acordavam da sua letargia, não fosse eu filho de algum membro do comitê central do PCUS, autorizado a andar vestido à ocidental.
Quando chegamos a Moscou, naquele ano de 1983, o maior bem que um consumidor soviético podia se dar ao luxo de adquirir era um gravador de cassetes duplo, com relógio e equalizador. No mercado-negro, o seu preço ascendia aos 2 mil rublos, uma pequena fortuna. Me recordo de ver numa vitrina na avenida Lênin, numa das primeiras explorações feita aos arredores da universidade, o primeiro leitor de vídeo-cassete da URSS, apresentado como um trunfo da indústria do país na sua luta ideológica contra o ocidente. O aparelho em exposição não estava, no entanto, à venda, e o simples cidadão só podia comprar um sob encomenda. Ter carro em Moscou era também um luxo para poucos. O modelo mais econômico não saía por menos de 15 mil rublos e era preciso esperar meses ou anos. Ser membro do PCUS ou ter algum amigo filiado no partido único da ex-União Soviética podia fazer com que esta espera fosse menor.
As famosas lojas Berioskas eram as únicas lojas em que se vendiam artigos importados em divisas estrangeiras. Com acesso restrito a estrangeiros e soviéticos ligados ao corpo diplomático, este modelo seria encontrado em todos os países de modelo de gestão comunista, incluindo Cuba, Angola e Moçambique. Os estudantes estrangeiros aproveitavam para aumentar o seu magro orçamento comprando artigos e revendendo-as aos amigos soviéticos. Geralmente, as vendas eram feitas no círculo de amigos ou a algum colega de residência estudantil comprador de muamba, geralmente um soviético com contatos fora da residência. Os estudantes africanos que recebiam dólares das suas embaixadas tornavam-se verdadeiros homens de negócio com o passar dos anos. Nem todos porém recebiam ajuda externa e, pouco a pouco, a universidade dividia-se entre aqueles que tinham dinheiro e os que não tinham. Nestas lojas, também eram aceites os chamados “rublos certificados”, dado a cidadão soviéticos que haviam cumprido alguma missão de serviço no estrangeiro, como diplomatas, atletas ou bailarinos do Teatro Bolshoi.
A instituição maior da economia paralela soviética, surgida pela incapacidade do estado em produzir bens de consumo duráveis, era a propina. Esta era uma situação absolutamente normal, que não causava constrangimento a nenhuma das parte envolvidas. O diretor de uma loja de produtos alimentares do estado vendia 90 por cento do estoque pela porta dos fundos, a quem pagasse mais, e colocava o resto na prateleira. Nos açougues, a carne em exposição era da pior qualidade, só guisado de segunda. O filet mignon era vendido a conhecidos, que não se importavam de pagar mais pelo produto. Nas conversas entre amigos, era comum que alguém se gabasse de ter um amigo diretor de loja do estado, que conseguia este ou aquele produto difícil de encontrar. Com exceção dos mais fanáticos, todo funcionário público recebia algum por fora para fazer o seu trabalho mais rapidamente. Um bom presente comprado numa loja para estrangeiros fazia com que qualquer processo não fosse parar ao alto da lista dos papéis.
Apesar do monopólio estatal na produção e distribuição, os agricultores soviéticos podiam comercializar parte das suas colheitas em mercados onde os preços fugiam ao controle do estado. Estes mercados existiam um pouco por toda a parte e colmatavam as graves lacunas no fornecimento de bens perecíveis. Carne de boa qualidade, enchidos e conservas, grande variedade de frutas frescas e secas, legumes e verduras que jamais eram vistos nas lojas oficiais comprovavam que na ex-URSS afinal podia se comprar qualquer coisa, era tudo uma questão de poder aquisitivo. Os agricultores de outras repúblicas mais favorecidas pelos sol, como o sul da Ucrânia ou a Moldávia, voavam diariamente às capitais do império para colocar os seus produtos à venda nos mercados privados.
O clima solarengo da então república soviética da Moldávia fazia daquela diminuta porção de terra, historicamente ligada ao território da atual Romênia, uma das repúblicas mais ricas da antiga União Soviética. Os seus habitantes tinham um nível de vida superior ao das demais repúblicas em virtude das boas e variadas colheitas que as suas terras proporcionavam. Nas primeiras férias de verão, em agosto de 1984, tive a oportunidade de contatar in loco esta realidade. Os moldavos dedicavam-se ao seu próprio cultivo e as plantações do estado estavam abandonadas. Os mercados tinham grande variedade de frutas e legumes, ovos e produtos lácteos, mas nem uma alface havia sido plantada em uma cooperativa do estado. Na capital da Moldávia, que naquele tempo se chamava Kishiniov, as frutas custavam barato mas em Moscou, a milhares de quilómetros de distância, meia dúzia de pêssegos não saíam por menos de 5 rublos, vinte vezes mais caros que numa loja do estado, mas de muito melhor qualidade. Os mercados eram o único lugar onde se podia comprar produtos de qualidade e sem filas, sendo que muitos moscovitas naquela época já podiam dar-se ao luxo de frequentá-los com alguma assiduidade.
Com base na teoria do internacionalismo, formulada por Vladimir Lênin, os governos soviéticos que se sucederam ao longo dos anos procuraram fazer com que os cidadãos soviéticos das muitas nacionalidades da ex-URSS fizessem parte de uma cultura comunista homogênea, conservando ao mesmo tempo as suas identidades nacionais, as suas tradições e, principalmente, os seus idiomas. Como resultado desta política, o analfabetismo foi erradicado e foram criados os alfabetos e as gramáticas de quase centena e meia de diferentes nacionalidades e povos. A partir daí, os estudantes soviéticos sempre puderam optar entre cursar uma faculdade em russo ou na sua própria língua. As ciências naturais obtiveram resultados notáveis, destacando-se as áreas da física e da química. No entanto, com a política de fazer com que todos os aspectos da cultura refletissem o universo da luta de classes e fomentassem a revolução comunista, a literatura, as belas-artes e também a ciência sofreram com as restrições impostas pela idéia de que os valores políticos podem condicionar os conceitos artísticos ou científicos.
Com Lênin ainda vivo, o modernismo russo viveu ainda uma era dourada, mas a invenção do “realismo socialista” como uma corrente estética viria a estabelecer limites para os artistas soviéticos. Na música, o jazz foi proibido por ser considerado “uma manifestação burguesa” - quando sempre foi uma música dos negros norte-americanos. O mesmo argumento serviu para que a cibernética fosse banida das universidades, o que fez com que a ex-URSS registrasse um grande atraso em relação aos países ocidentais quando se deu a “revolução informática” nos anos 90 do século passado. Como consequência, muitos cientistas ou escritores foram “banidos” e internados em hospitais psiquiátricos ou campos de trabalho forçado. Muitos se tornaram famosos do lado de cá da cortina de ferro, como o físico nuclear Andrei Sakharov ou os escritores Aleksandr Soljenisin e Boris Pasternack.
No país dos sovietes*, apesar do regime vigente se auto-intitular de “ditadura do proletariado”, o que vigorou sempre foi a ditadura da burocracia. Um fenômeno, aliás, identificado pelo próprio pai da revolução, Vladimir Lênin, no seu testamento, o de que o aparelho de estado havia sido tomado pelos pequenos funcionários do partido, originando uma nova classe dominante, a nomenklatura. Aquando da subida dos bolcheviques* ao poder, Lênin logo percebeu que não conseguiria conduzir um país sem especialistas e tratou de pagar bons salários aos quadros que eram oriundos do antigo regime, para que estes não abandonassem a nova nação. A convivência entre a antiga classe média do czarismo e os comunistas não foi nada pacífica, como nos relata o célebre romance de Pasternack, Doutor Jivago*, eternizado pelas telas de cinema. A nova classe dirigente da Rússia tratou de moldar o sistema segundo os seus interesses de eternização no poder, surgindo uma nova intellingentsia, que adotou a burocracia como ciência e filosofia de estado. O procedimento burocrático impregnou a sociedade toda a partir daí e a teia de relações da nova elite. Iussef Stálin, um burocrata que não teve a menor participação nos grandes feitos das revolução de 1917, foi o precursor do culto à personalidade, que muitos revolucionários por este mundo afora iriam copiar quando ocuparam a cadeira do poder.
Uma dos grandes feitos apontados pelos comunistas soviéticos era a figura do pleno emprego. De fato, uma pessoa podia demitir-se de uma fábrica e arranjar emprego no outro quarteirão. Não havia estabelecimento, comercial ou industrial, que não tivesse uma placa enferrujada a anunciar a admissão de trabalhadores. Só que, na economia estatizada soviética, onde tudo era de todos e nada era de ninguém, um imenso funcionalismo público, os níveis de produtividade eram baixíssimos. Um operário de uma fábrica metalúrgica que ganhasse 300 rublos por mês tinha o seu salário garantido fizesse ele 30 ou apenas 1 detalhe por dia de trabalho. O mais normal, entre um gole e outro de vodka, era fazer meio detalhe. Esta situação da economia soviética já tinha sido constatada por analistas ocidentais desde os anos 60, quando começou o chamado “período de estagnação da era Brejnev”, assim descrito pelos cientistas políticos da era Garbatchov.
Na verdade, foi Nikita Krushev quem percebeu que a economia soviética não conseguia competir com a do ocidente, mas a sua inabilidade nos assuntos econômicos e a sua maneira atabalhoada de ser fizeram com que fosse apeado pela linha dura do partido, que não havia gostado que os crimes do ditador Stálin tivessem sido expostos ao mundo no XX congresso do PCUS em 1956. Leonid Brejnev e o seu círculo não conseguiram colocar a economia nos trilhos, mas fizeram o possível para manter as aparências a nível interno. No plano internacional, foi o que se viu. A URSS alinhou na corrida armamentista do presidente norte-americano Ronald Reagan e foi obrigada a jogar a toalha no tapete.
Assim que, quando cheguei em Moscou em 1983, o gigante comunista não passava de um império semi-paralisado, vivendo das exportações de petróleo e do gás natural da Sibéria e com um parque industrial onde nove em cada dez empresas davam prejuízo. Alguns anos passariam ainda antes que um jovem (para os padrões soviéticos) secretário-geral do PCUS considerasse que era a hora de fazer alguma coisa. Michail Garbatchov andava ainda na universidade quando se deu a chamada “primavera krucheviana”, época em que o jazz deixou de ser proibido e os setores progressistas do PCUS tentaram dar um rosto mais humano ao comunismo. O último líder da URSS protagonizou a maior reviravolta cultural no país, a perestroika, criando um clima de liberdade de expressão inédito, ao mesmo tempo que quis implantar as bases para uma reforma gradual da economia e a sua conversão para a economia de mercado, mas com um cariz socialista. O que Garbatchov fez foi nada mais nada menos que aplicar a NEP - Nova Política Econômica, criada por Lênin, nos anos 20, quando este se apercebeu da quebra da produção na sequência da centralização da economia nas mãos do estado. A NEP consistia na liberação da atividade do pequeno comércio e das profissões liberais, de modo a combater a escassez de gêneros de primeira necessidade e serviços primários que assolava a então jovem nação comunista.
A neve
Um dia, quando regressava à casa, depois das aulas, notei que os pássaros estavam muito alvoroçados. Piavam muito, fazendo enorme alarido, o que me fez recordar o filme “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, pois aquilo não parecia ser normal. De repente, como se tivessem combinado, levantaram vôo, aos milhares, enchendo o céu. Lá no alto, o barulho que faziam era ensurdecedor. Estariam tramando algum ataque? Perseguiriam as pessoas, a exemplo da ficção cinematográfica? Outros milhares de pássaros, de todas as direções, vieram juntar-se ao grupo. Mais parecia ser uma convenção com milhares de participantes quando, como se tivessem dado o toque de retirar, rumaram todos em direção ao sul, em busca de climas mais quentes. Cumpria-se o ritmo da natureza. Só ficaram os corvos, pássaros que conseguem sobreviver às mais baixas temperaturas. Era o sinal de que o inverno estava à porta. Foi por estes dias que levaram os estudantes da preparatória a comprar as roupas para o inverno no GUM, o principal centro comercial moscovita, situado na Praça Vermelha, em frente ao Kremlin. As roupas que nos deram eram quase todas de fabrico soviético. Um grande sobretudo para o inverno, botas para a neve, um terno de corte antiquado, um cachecol horroroso e a inevitável “chapka”, aquele gorro russo peludo, mundialmente conhecido. As roupas esportivas eram da Tchecoslováquia e, no geral, o vestuário oferecido pela Lumumba era bastante resistente, apesar do modesto design. Com a chegada da neve, os estudantes da Lumumba vestiram-se de igual para enfrentar as baixas temperaturas. O caminho até as aulas, todos os dias, mais parecia um cortejo de casacos e gorros escuros, que contrastavam com o colorido sintético dos cachecóis. Os que haviam trazido alguma roupa de casa ainda conseguiam fugir à uniformização, mas os estudantes dos países mais pobres, principalmente de África, tinham que se contentar com as roupas que a universidade oferecera. No primeiro inverno, ninguém conseguiu fugir ao uso do sobretudo mas, com o passar dos anos, adquiria-se alguma resistência ao frio.
Quando as temperaturas baixaram, tivemos que vedar a janela de vidros duplos do quarto com algodão e esparadrapo. Durante os cinco a seis meses em que a neve ir perdurar, tínhamos que nos contentar com a portinhola que havia no canto superior da janela, que acabava por ser o nosso frigorífico. Numa sacola, pendurávamos o que podia ficar congelado. Também se colocavam lá as cervejas, quando se queria que gelassem rapidamente. Às vezes, o frio era tanto que algumas garrafas estouravam, devido ao aumento do volume da cerveja, que se congelava. Os andares da parte de baixo do prédio eram muito frios pois, como estudamos em física, o ar quente sobe, e a temperatura aumentava a medida em que se subia o edifício. No segundo ano, eu e Zau recebemos um quarto da universidade para morar que ficava no quinto andar e, como tinha uma calefação grande, a temperatura no inverno era bastante agradável, podendo se andar em calções. Este primeiro quarto era tão quente que, mesmo no inverno, se estivessem apenas alguns graus negativos, tínhamos que deixar a janelinha aberta, pois senão sufocávamos de calor, o que até era irônico, pois lá fora não parava de nevar.
A resistência dos russos ao frio é espantosa. Num dia de inverno, é quase impossível andar sem luvas, pois os dedos das mãos congelam. As orelhas são outro ponto sensível e faz-se mister cobri-las. No entanto, causava inveja ver os moscovitas à espera do ônibus, segurando sacolas ou pastas sem luvas, como se nada fosse. Eu tive amigos que, mesmo com uma temperatura negativa de 14 graus centígrados, usavam apenas uma camiseta sob o casaco. O frio é também elemento importante na medicina russa, utilizado como método de cura. Conhecidas no mundo inteiro são aquelas imagens dos russos banhando-se em buracos abertos no rio congelado. O que poucos sabem é que a maioria destas pessoas o faz por recomendação médica. Liova, um russo que foi meu colega na Lumumba e um dos meus melhores amigos durante os sete anos que vivi em Moscou, tinha graves problemas renais, que o obrigavam a constantes internamentos. Só conseguiu se curar quando se converteu num “morsh”, como são chamadas as pessoas que nadam em águas geladas. Tive uma professora que contou que o filho dela sofria de asma e que foi curado com “banhos de frio”. Ele o punha, quando pequenino, apenas em cuecas e abria a janela da habitação por uma, duas horas, todos os dias.
A neve era uma novidade para nós e o frio não nos impedia de, nos finais-de-semana, sair para passear, ir a algum museu ou simplesmente passear nos bosques. Tínhamos que nos agasalhar bem, colocar luvas, cachecol e, principalmente, não esquecer de vestir ceroulas. Quando o meu filho nasceu, o trenó passou a ser uma componente obrigatória nas saídas. Até aí um objeto que eu só havia visto em filmes, o trenó passou a fazer parte do nosso cotidiano, assim como sempre o foi para os povos dos países frios. O trenó tanto pode ser um instrumento de lazer como ser utilizado para fazer compras. Com Dadi, o meu filho, eu saía todos os dias para passear e ir às lojas do estado comprar os produtos para o dia-a-dia, como leite, pão e queijo. No bosque perto da universidade, havia uns caminhos feitos especialmente para trenós, em declive acentuado, e dava um gozo muito grande deslizar por eles rapidamente, geralmente com a corrida acabar num monte de neve. O interessante é que a neve não molha. Basta sacudir as roupas e está-se novamente pronto para outra. No entanto, havia que tomar muito cuidado em determinadas alturas do ano, no início do inverno e na primavera, quando as temperaturas são negativas à noite mas, durante o dia, podem às vezes chegar até os 15 graus centígrados. A água descongelada vira gelo com o cair da temperatura e muitas vezes, ao sair de casa no dia de seguinte, tínhamos pela frente um verdadeiro ringue de patinação. A neve que eventualmente caísse cobria o caminho com uma fina película, disfarçando o perigo. No princípio, as quedas eram inevitáveis, mas com o tempo íamos aprendendo a nos equilibrar e, com um pouco de prática, pegava-se embalo e deslizávamos como se estivéssemos de patins.
Eram umas cinco da tarde quando começou a nevar pela primeira vez desde que chegara a Moscou. Nevou tanto que, no outro dia de manhã, ao sairmos para as aulas, a paisagem mudara completamente. Se não fosse o trabalho dos limpa-neves, provavelmente teríamos dificuldade em sair da residência. É incrível que, mesmo em meio a tempestades de neve, as máquinas que retiravam a neve das ruas não descansavam um minuto. Em cada prédio, havia uma pessoa responsável para limpar a neve dos passeios e abrir caminho até as casas. Este trabalhador estava sempre disponível para limpar a neve, porque às vezes nevava dias sem parar. O mesmo se passava com as máquinas, que estavam ligadas dia e noite, se acaso fosse necessário. No final do inverno, como a neve não derretia, formavam-se às vezes grandes paredões com a neve que ia sendo acumulada ao lado dos passeios. Na primavera, aquela neve toda virava um charco.
Quando as temperaturas baixaram, tivemos que vedar a janela de vidros duplos do quarto com algodão e esparadrapo. Durante os cinco a seis meses em que a neve ir perdurar, tínhamos que nos contentar com a portinhola que havia no canto superior da janela, que acabava por ser o nosso frigorífico. Numa sacola, pendurávamos o que podia ficar congelado. Também se colocavam lá as cervejas, quando se queria que gelassem rapidamente. Às vezes, o frio era tanto que algumas garrafas estouravam, devido ao aumento do volume da cerveja, que se congelava. Os andares da parte de baixo do prédio eram muito frios pois, como estudamos em física, o ar quente sobe, e a temperatura aumentava a medida em que se subia o edifício. No segundo ano, eu e Zau recebemos um quarto da universidade para morar que ficava no quinto andar e, como tinha uma calefação grande, a temperatura no inverno era bastante agradável, podendo se andar em calções. Este primeiro quarto era tão quente que, mesmo no inverno, se estivessem apenas alguns graus negativos, tínhamos que deixar a janelinha aberta, pois senão sufocávamos de calor, o que até era irônico, pois lá fora não parava de nevar.
A resistência dos russos ao frio é espantosa. Num dia de inverno, é quase impossível andar sem luvas, pois os dedos das mãos congelam. As orelhas são outro ponto sensível e faz-se mister cobri-las. No entanto, causava inveja ver os moscovitas à espera do ônibus, segurando sacolas ou pastas sem luvas, como se nada fosse. Eu tive amigos que, mesmo com uma temperatura negativa de 14 graus centígrados, usavam apenas uma camiseta sob o casaco. O frio é também elemento importante na medicina russa, utilizado como método de cura. Conhecidas no mundo inteiro são aquelas imagens dos russos banhando-se em buracos abertos no rio congelado. O que poucos sabem é que a maioria destas pessoas o faz por recomendação médica. Liova, um russo que foi meu colega na Lumumba e um dos meus melhores amigos durante os sete anos que vivi em Moscou, tinha graves problemas renais, que o obrigavam a constantes internamentos. Só conseguiu se curar quando se converteu num “morsh”, como são chamadas as pessoas que nadam em águas geladas. Tive uma professora que contou que o filho dela sofria de asma e que foi curado com “banhos de frio”. Ele o punha, quando pequenino, apenas em cuecas e abria a janela da habitação por uma, duas horas, todos os dias.
A neve era uma novidade para nós e o frio não nos impedia de, nos finais-de-semana, sair para passear, ir a algum museu ou simplesmente passear nos bosques. Tínhamos que nos agasalhar bem, colocar luvas, cachecol e, principalmente, não esquecer de vestir ceroulas. Quando o meu filho nasceu, o trenó passou a ser uma componente obrigatória nas saídas. Até aí um objeto que eu só havia visto em filmes, o trenó passou a fazer parte do nosso cotidiano, assim como sempre o foi para os povos dos países frios. O trenó tanto pode ser um instrumento de lazer como ser utilizado para fazer compras. Com Dadi, o meu filho, eu saía todos os dias para passear e ir às lojas do estado comprar os produtos para o dia-a-dia, como leite, pão e queijo. No bosque perto da universidade, havia uns caminhos feitos especialmente para trenós, em declive acentuado, e dava um gozo muito grande deslizar por eles rapidamente, geralmente com a corrida acabar num monte de neve. O interessante é que a neve não molha. Basta sacudir as roupas e está-se novamente pronto para outra. No entanto, havia que tomar muito cuidado em determinadas alturas do ano, no início do inverno e na primavera, quando as temperaturas são negativas à noite mas, durante o dia, podem às vezes chegar até os 15 graus centígrados. A água descongelada vira gelo com o cair da temperatura e muitas vezes, ao sair de casa no dia de seguinte, tínhamos pela frente um verdadeiro ringue de patinação. A neve que eventualmente caísse cobria o caminho com uma fina película, disfarçando o perigo. No princípio, as quedas eram inevitáveis, mas com o tempo íamos aprendendo a nos equilibrar e, com um pouco de prática, pegava-se embalo e deslizávamos como se estivéssemos de patins.
Eram umas cinco da tarde quando começou a nevar pela primeira vez desde que chegara a Moscou. Nevou tanto que, no outro dia de manhã, ao sairmos para as aulas, a paisagem mudara completamente. Se não fosse o trabalho dos limpa-neves, provavelmente teríamos dificuldade em sair da residência. É incrível que, mesmo em meio a tempestades de neve, as máquinas que retiravam a neve das ruas não descansavam um minuto. Em cada prédio, havia uma pessoa responsável para limpar a neve dos passeios e abrir caminho até as casas. Este trabalhador estava sempre disponível para limpar a neve, porque às vezes nevava dias sem parar. O mesmo se passava com as máquinas, que estavam ligadas dia e noite, se acaso fosse necessário. No final do inverno, como a neve não derretia, formavam-se às vezes grandes paredões com a neve que ia sendo acumulada ao lado dos passeios. Na primavera, aquela neve toda virava um charco.
Saturday, November 05, 2005
A festa da revolução
A Revolução de Outubro, afinal, comemorava-se a 7 de novembro. Isto porque, quando se deu a revolução em 1917, a Rússia ainda se guiava pelo calendário antigo, o juliano, instituído por Júlio César (100-44 a.C.), que tentou colocar alguma ordem na confusão sobre a contagem do tempo que vigorava na altura. O imperador romano foi quem instituiu o ano de doze meses, com a duração de 365 dias e seis horas, mas o cálculo feito pelos melhores astrônomos da época estava errado, pois o ano solar é de 365 dias, cinco horas, 48 minutos e 46 segundos. Em 1582, o papa Gregório XII corrige o calendário juliano, de modo a calcular corretamente a data da Páscoa, e empresta o nome ao novo calendário, o gregoriano. A maioria dos países adota o novo sistema mas a Rússia se mantém fiel ao antigo. Assim é que, quando se dá a revolução de 1917, os russos tinham um atraso de 13 dias em relação ao calendário ocidental. Até a queda do muro de Berlin, as comemorações eram assinaladas em 7 de novembro, data que correspondia ao 25 de outubro pelo anterior calendário. Por isso é que, pela historiografia soviética, era chamada de Revolução de Outubro.
No dia 7 de novembro, quando as temperaturas já se aproximavam do zero grau centígrado, Zau, Marcos e eu fomos ao centro de Moscou, juntamente com mais alguns brasileiros da Lumumba. O trânsito havia sido encerrado nas ruas adjacentes ao Kremlin, coração do estado soviético, e milhares de pessoas esperavam a hora dos fogos de artifício, uma tradição que remontava aos tempos imperiais. A festa oficial tinha sido à tarde, com o Exército Vermelho e os mísseis a desfilar na Praça Vermelha, mas esta só podia ser vista pela televisão, pois os lugares na praça eram reservados a representantes dos sindicatos de trabalhadores de toda a União Soviética e demais instituições. Os chefes de estado convidados ocupavam lugar na tribuna de honra, que era o cimo do mausoléu de Lênin, ao lado dos dirigentes soviéticos. Para as massas, estava reservado o festival de fogos de artifício, que se repetia nos demais feriados ao longo do ano. Após o desmembramento da União Soviética, a data da revolução russa de 1917 deixou de ser assinalada oficialmente pelos países que então se formaram, a não ser alguns poucos saudosistas em idade avançada que teimam em sair à rua com bandeiras vermelhas.
Os dias que abalaram o mundo
A revolução russa de 1917 foi um dos fatos mais importantes da história contemporânea e viria a marcar profundamente o século XX. Trabalhadores, intelectuais e artistas de todo o planeta saudaram a nova nação comunista nos seus primeiros anos de existência como um sopro de renovação num mundo velho que havia acabado de sair da 1ª Guerra Mundial*. Novos ideais de justiça social adquiriam grande projeção, entusiasmando as populações dos países ocidentais, que vislumbravam outros horizontes com o caminho aberto pelo primeiro governo de operários, camponeses e soldados do mundo. No olho do furacão, Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin, o homem que iria guiar os milhões de deserdados do império russo na tomada do poder. Para chegar lá, acreditou sempre em suas idéias e não desviou um milímetro do rumo traçado pacientemente nos anos de exílio, transformando em poucos meses o seu pequeno partido na vanguarda da revolução.
Como todo mundo deve saber, uma revolução se dá quando uma classe social chega ao poder, usurpando a propriedade dos meios de produção e controlando a máquina do estado. Na história contemporânea, poucas foram as revoluções e muitos os golpes palacianos que, de revolucionários, só tiveram mesmo o nome. O golpe dos militares brasileiros em 1964 levou o nome de Revolução de Março sem o sê-lo. No Brasil, só houve uma revolução, a Revolução de 1930, quando foram derrubadas as oligarquias da República Velha. Na ocasião, os grandes latinfudiários perderam o controle do país para a crescente burguesia brasileira, num processo que se convencionou chamar de “revolução burguesa”. As revoluções também começam por golpes, mas a manutenção ou não das instituições vigentes é que vai definir se houve ou não uma revolução. No caso soviético, a Rússia passou por duas revoluções naquele ano de 1917. Em fevereiro, quando o czar abdica, empurrado pela revolta popular, e, passados poucos meses, em outubro, quando os bolcheviques chegam ao poder.
Quando o czarismo é derrubado, a situação da Rússia era catastrófica. Com três anos de guerra, a fome e as epidemias alastravam-se pelo país. A desorganização era igual na frente de guerra, com deserções em massa e os soldados não podendo combater, vencidos pelo frio e pela falta de alimentos. Para conter o crescente descontentamento, a repressão aumentava por todo o país, com o czar sendo influenciado por Rasputin, o sinistro camponês que praticamente controlava as decisões do governo. O isolamento cada vez maior do czar Nicolau II, com as suas tropas a passarem para o lado do inimigo, leva a que uma aliança entre os camponeses ricos e democratas promovam a insurreição que derruba o trono dos Romanov em 27 de fevereiro (8 de março pelo atual calendário). Foi decretada a liberdade de imprensa e de associação partidária e abolida a pena de morte para os crimes políticos. Quando Nicolau II é deposto, os bolcheviques eram uma pequena seita política* que iria rapidamente ganhar a confiança do povo russo e mudar o rumo dos acontecimentos no decorrer de poucos meses.
Glossário da revolução russa
Para entender a revolução russa, é primeiro necessário conhecer o significado das múltiplas organizações russas que compunham o espectro político do país em 1917. Quem bem descreveu o emaranhado de siglas, partidos e comitês operários foi o jornalista John Reed, em cujo relato me baseei para escrever as seguintes linhas. Convém salientar que, como escreve Reed, que presenciou os dias da revolução, a população russa, mau grado o atraso do país em relação à Europa Ocidental, era bastante politizada, participando ativamente nas organizações populares, consumindo com voracidade o que era publicado pelas dezenas de jornais diários existentes, representantes dos mais variados grupos políticos, que obtinham tiragens diárias de milhões de exemplares. Em todas as cidades, na maior parte das vilas e na frente de combate, toda e qualquer facção política tinha o seu jornal. Milhares de panfletos inundavam diariamente as fábricas, as ruas e as tendas de campanha. Os russos estavam aprendendo a ler e devoravam publicações sobre história, política, economia, as obras dos grandes escritores russos. Reed conta em seu livro que, quando visitou o 12º exército, na frente perto de Riga, onde soldados descalços adoeciam na lama das trincheiras, a primeira que coisa que lhe perguntaram é se tinha trazido “alguma coisa para ler”. Este processo de conscientização política das populações na Rússia vinha crescendo desde 1905, quando Nicolau II mandou disparar contra uma manifestação pacífica de camponeses, originando a Revolução Russa de 1905, o que propiciou o surgimento de um novo tipo de organização independente, formada por representantes das classes trabalhadoras, na cidade e no campo, os “sovietes”.
Durante séculos, desde Ivan IV, a pirâmide social na Rússia era composta por três classes: os boiardos, os kulaks e os mujiques. No topo, estava o czar, que dividia a administração do território com os boiardos, que eram os aristocratas russos. As terras dos boiardos eram cultivadas pelos mujiques, os camponeses, que, até o ano de 1861, trabalharam sob o regime de servidão. No campo, havia também uma pequena burguesia agrária, os kulaks, os camponeses ricos, donos de pequenas extensões de terra. Estes três grupos sociais mantiveram sempre um ódio ancestral recíproco, resultado de uma tensão social constante em virtude da miséria da imensa maioria da população. Nas cidades, um operariado crescente ganhava consciência política num capitalismo primário e selvagem, convivendo com outros setores da pequena burguesia urbana.
Entre a infinidade de organizações que existiam, mencionarei as que tiveram um papel mais proeminente no curso dos acontecimentos de 1917:
1) Cadetes: os constitucionalistas-revolucionários, (das iniciais K e D, em que John Reed translitera o nome em russo para uma transcrição fonética aproximada). No tempo do czar, era o partido da reforma política, constituído por liberais da burguesia industrial, equivalente ao Partido Progressista da América, formado por Theodore Roosevelt em 1912.
2) Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR): eram os socialistas-marxistas. Num congresso do partido, em 1903, dividiu-se em duas facções, a maioria (bolshinstvô) e a minoria (menshinstvô), originando os nomes “bolchevique” (membro da maioria) e “menchevique”, membro da minoria. Cada ala formou um partido, colocando ambas o mesmo nome de PSODR. Apesar da nomenclatura, desde a Revolução de 1905 os bolcheviques eram a minoria enquanto os mencheviques estavam em posição maioritária nos sovietes de operários e soldados.
3) Mencheviques: era composto por intelectuais que acreditavam na construção do socialismo pela via política. Consideravam que a Rússia não reunia as condições para uma revolução deste gênero pois necessitava antes percorrer outras etapas, construindo um capitalismo democrático.
4) Bolcheviques: inertes até a chegada de Lênin do exílio, mudam o nome para Partido Comunista e pregam a insurreição imediata, defendendo a entrega do poder aos sovietes e a extinção da propriedade privada e dos latifúndios. A sua doutrina foi de encontro aos anseios não só do proletariado urbano e dos soldados cansados de guerra, mas também de parte considerável dos camponeses pobres.
5) Partido Socialista Revolucionário: os eseristas (SR’s), das iniciais de seu nome em russo. Começou como uma organização armada camponesa, que defendia a abolição da propriedade privada na terra, mas, após a revolução de fevereiro de 1917, dividiu-se em eseristas de direita e de esquerda, com os primeiros a representar os camponeses ricos, os intelectuais e populações dos distritos rurais longínquos. Os eseristas de esquerda partilhavam a mesma cartilha bolchevique, defendendo a expropriação sem indenizações dos grandes latifúndios, e chegaram a ocupar cargos no governo soviético, nomeadamente, na pasta da agricultura.
6) Soviete: em russo, a palavra significa “conselho”, associada organizações populares de trabalhadores, soladados e camponeses desde a revolução de 1905. A maior parte dos sovietes de operários e soldados aglutiram-se após a revolução de fevereiro de 1917, sendo que os soviete dos camponeses juntou-se aos outros dois após a tomada do poder pelos bolcheviques. O orgão que aglutinava os sovietes urbanos era o TsIK, o Comitê Executivo Central de toda a Rússia dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados.
7) Duma: significa qualquer coisa como “organismo deliberativo”. A Duma Imperial ainda funcionou de um modo democrático após o fim do czarismo mas desapareceu em outubro de 1917.
8) Comitês do exército: foram formados por soldados na frente de combate para diluir a influências dos oficiais do antigo regime após a revolução de fevereiro. Devido ao colapso administrativo do exército, em consequência da guerra mal conduzida, em muitos casos tiveram que assumir o próprio comando das tropas.
9) Guardas Vermelhos: operários armados, formados pela primeira vez na Revolução de 1905 e que reapareceram em fevereiro de 1917, quando foi necessária uma força para manter a ordem nas cidades. Em todas as crises da revolução, os guardas vermelhos foram chamados a intervir, sem qualquer treino ou disciplina, mas “cheios de fervor revolucionário” (Reed dixit).
10) Guardas brancos: voluntários da burguesia que surgiram nos dias que antecederam a Revolução de Outubro, para tentar impedir os bolcheviques de abolirem a propriedade privada.
Com a revolução bolchevique, foram extintas todas as organizações políticas, sendo criado o Conselho dos Comissários do Povo, o único organismo que poderia existir durante o período que criaria as bases para a construção do comunismo, a “ditadura do proletariado”, e que vigoraria até o completo desaparecimento do estado.
Os homens e suas idéias mirabolantes
Segundo alguns historiadores, o socialismo terá surgido durante a revolução francesa, como uma das muitas correntes de pensamento daquele período, mas foi com Karl Marx e Frederico Engels que ganhou forma e conteúdo com a publicação do Manifesto Comunista em 1848. Nos anos seguintes, os dois pensadores alemães iriam produzir o maior estudo econômico e político da civilização européia até então. Ao contrário dos socialistas da altura, os chamados “socialistas utópicos”, que imaginavam uma sociedade perfeita, Marx e Engles traçaram um caminho para a transformação da sociedade capitalista em sociedade socialista, criando uma nova linha de pensamento que se designou chamar de “socialismo científico”. Em obras como O Capital e o Materialismo Dialético, Karl Marx elabora a mais completa análise do processo civilizatório, demonstrando a inevitabilidade do comunismo com base na teoria da “luta de classes”.
A teoria marxista diz que a luta de classes é o motor que move a história do homem desde o seu princípio. O constante atrito social entre senhores e escravos, no esclavagismo, entre nobres e servos, no feudalismo, entre burgueses e operários, no capitalismo, alavancou a construção de uma sociedade que, numa visão dialética do processo histórico, caminharia no sentido da abolição do sistema de classes, o comunismo. As mudanças seriam impulsionadas pelas organizações de classe e, assim, como a burguesia depôs a nobreza, os proletários organizados iriam derrubar os capitalistas burgueses. O socialismo seria uma etapa intermediária na construção do comunismo, em que elementos do anterior sistema conviveriam com novas estruturas, num período em que a “ditadura do proletariado” gerenciaria o estado, para se defender da contra-revolução burguesa, até a sua extinção.
A revolução proletária seria, pois, inevitável, mas, como acreditava Marx, ela aconteceria num país em que o capitalismo estivesse altamente desenvolvido, “quando as contradições da sociedade se agudizasem ao máximo”, o que se pressupõe que teria que haver um longo período de evolução capitalista e que ela não poderia acontecer em países atrasados e agrícolas. Esta passagem do capitalismo ao comunismo, através do socialismo, seria financiada pela “mais valia” da produção, o lucro capitalista, que seria agora redirecionado pelo estado para a construção da nova sociedade. Por essa ótica, a Rússia de 1917, um país agrário com um pequeno proletariado urbano, não reuniria as condições para o socialismo enquanto não tivesse a sua revolução burguesa. É aí que aparece Vladimir Lênin, que traz novos contributos no plano teórico-prático da revolução socialista, definindo as perspectivas da ação revolucionária durante a fase superior do capitalismo, o imperialismo. Ao se constatar uma dinâmica reformista nos países mais industrializados, o foco revolucionário se deslocaria para os países mais atrasados. Para se chegar lá, era necessário um partido político com disciplina férrea, formado por militantes profissionais, que fosse a “vanguarda da revolução” e conduzisse os operários ao poder. Lênin também acreditava que a guerra provocaria revoluções proletárias nos países europeus, como a Alemanha, e que uma onda socialista varreria o continente. A não concretização dessa expectativa, com o ascensão do nazi-fascimo, deu espaço para que Stálin formulasse a teoria do “socialismo num só país” e instaurasse o seu regime de terror.
O comício da estação Finlândia
Após a queda do czarismo, a Rússia era governada por um governo de coalizão provisório formado pelos cadetes, pelos socialistas revolucionários (os eseristas) e pelos mencheviques. Os sovietes de operários e soldados e o dos camponeses de toda a Rússia tinham avalizado este governo até a realização de uma assemblea constituinte, marcada para dezembro. Em abril, Lênin abandona o exílio na Suíça e é recebido em apoteose pela população na estação Finlândia, em São Petersburgo*. À multidão, lançou o slogan que iria mudar o curso dos acontecimentos e ser adotado como lema de um povo: “Todo poder aos sovietes*!”. Mas, no seio do partido bolchevique, a questão não foi assim tão pacífica. Os camaradas que tinham tocado o barco interno da organização durante o exílio dos camaradas que agora chegavam com a Revolução de Fevereiro não gostaram muito de serem ultrapassados nas suas convicções. Stálin e Kámenev, burocratas que se acostumaram a com o posto de chefia na ausência do cérebro do partido, mostraram o seu desacordo, argumentando que os camaradas que estavam de regresso estavam a cometer um erro de análise conjuntural. Mas Lênin, que tinha escrito a cartilha do partido, virou o jogo no comitê central, lembrando-lhe as teses principais da revolução: abolição da propriedade privada, a nacionalização da terra e todo poder aos sovietes.
Em suas Teses de Abril, Lênin traça o caminho até a revolução com base na sua análise da conjuntura internacional. Em primeiro lugar, considera que Rússia já tinha dado o primeiro passo com a revolução burguesa e que faltava agora dar o segundo, entregando o poder aos operários e camponeses. O novo regime seria não uma república parlamentar mas sim uma república soviética. Lênin acredita que, apesar do seu partido ser minoritário naquele momento, conseguirá, com a miltância persistente, congregar a maioria e assim legitimizar a tomada do poder. A seguir, qualifica a guerra como uma “guerra de rapina”, entre nações imperialistas, contrária aos interesses do proletariado, que só devem apoiar uma guerra que deponha a burguesia, advogando a paz imediata. Por fim, o Lênin estabelece um amplo plano de nacionalizações dos meios de produção e distribuição, de toda a terra e do sistema bancário, que seriam controlados pelos sovietes.
Conta-se que Lênin, no dia a seguir a chegada do exílio, reuniu-se com o comitê central do partido pela primeira vez e enfrentou a resistência dos seus camaradas. O futuro primeiro chefe de estado soviético ouviu o que os seus pares tinham a dizer e, quando começou a falar, sempre de olhos fechados, não desviou uma linha do pensamento erigido ao longo de tantos anos de exílio. Quando terminou a sua intervenção, os demais perceberam que os cegos, até aquele momento, tinham sido eles, que não tinham descortinado o caminho da revolução.
Apesar das teorias de Lênin terem se concretizado, Stálin nunca digeriu muito bem o fato de os membros mais experientes do partido serem membros da intelectualidade. Até Trotski, que aderiu ao partido nos dias que antecederam a revolução, tinha maior influência que o próprio Stálin. O que os separava, ao fim e ao cabo, eram as suas origens sociais, pois tanto Lênin como Trótski eram filhos da pequena burguesia, enquanto Stálin era filho de operários. Estas diferenças acirraram-se após a morte prematura do pai da revolução, quando a velha guarda do partido começou a utilizar métodos pouco democráticos contra os intelectuais. Em entrevista a um jornalista alemão, Ludwig XXX, anos mais tarde, Stálin menosprezou a importância do exílio na formação revolucionária, argumentando que não era preciso viajar ao estrangeiro para se adquirir conhecimentos científicos sobre qualquer coisa. Stálin saiu poucas vezes da Rússia, sempre em deslocações rápidas, sendo que numas destas ocasiões jogou xadrez com Lênin. No entanto, como notou o jornalista, manifestava um profundo desconhecimento dos valores da cultura europeia, mesmo sendo um homem poderoso, que manteve pouco contato ao longo de sua vida com pessoas que tenham passado por um banco de universidade.
A luta continua
No verão de 1917, a situação na Rússia piorava de dia para dia. A desorganização generalizada no abastecimento das cidades, causada pela guerra, que tirava os lavradores do campo para alinhá-los nos campos de batalha, era aproveitada pelos especuladores, que açambarcavam víveres e combustível e vendiam em segredo ao exterior. As fábricas fechavam, as linhas férreas estavam quase paralisadas, os roubos e os assaltos proliferavam e a população, na sua maioria, mulheres com os filhos ao colo, tinha que suportar horas na fila, com as suas senhas de racionamento, para conseguir a dose diária de pão, leite, açúcar e tabaco, que era de uma libra (cerca de 500g), mas que foi diminuindo até chegar aos 125g nos dias anteriores ao putch bolchevique. Os agentes da antiga polícia política czarista ainda se mantinham na ativa, juntamente com toda espécie de organizações clandestinas, financiados por industriais e grandes latinfudiários, conjurando planos secretos deter o avanço das forças populares. A política do governo provisório constava de reformas ineficazes e do aumento das medidas repressivas, com a proibição dos jornais revolucionários e o envio dos cossacos para conter os protestos populares nas províncias. A balança da Revolução de Fevereiro, que colocara em dois pratos opostos os sovietes e o governo provisório, o povo e a classe média, estava começando a pender para um dos lados.
Com a sua política de condenação à guerra, o grande problema russo que o governo provisório não havia resolvido, e de reivindicação do poder aos representantes diretos dos trabalhadores, soldados e camponeses, o partido de Lênin atraía milhões de pessoas para o seu discurso. Em junho, toma posse o governo provisório de Aleksandr Kerenski, um eserista que havia sido ministro da Guerra, ordenando uma ofensiva no campo de batalha. Com o falhanço militar russo em 20 de julho, os alemães invadem a Rússia e, em Petrogrado, estala a revolta popular, um levantamento desorganizado dos operários, que ocuparam o palácio de Táurida, antiga residência do czar e onde estava instalado o governo provisório. Com o falhanço da investida, Kerenski, convertido em primeiro-ministro, inicia uma caça aos bolcheviques, que apoiaram o movimento, enviando centenas de militantes para a prisão, entre eles Lev Trotski, que havia aderido à política de Lênin*. Este, por seu turno, consegue escapar, escondido por Stálin.
Em agosto, o sexto congresso do partido bolchevique realiza-se na clandestinidade e confirma as Teses de Abril de Lênin como linha programática. No final do mês, a cidade de Riga cai em mãos dos alemães e Kerenski demite o general Kornilov, que, por seu turno, decide avançar sobre Petrogrado, numa tentativa de golpe militar patrocinada por ingleses e franceses, mas a sua investida é travada pela população armada da cidade, com os bolcheviques na primeira fila da resistência. O general golpista é detido pelos comitês de soldados, ministros e generais do governo são demitidos e o gabinete de Kerenski cai. Os bolcheviques, que são libertados das cadeias na sequência do golpe falhado, são os primeiros a apoiar Aleksandr Kerenski na formação de um novo governo. A estratégia do partido de Lênin era simples: antes um governo provisório do que o regresso da ditadura. Com esta atitude, cresce a influência dos bolcheviques, que ganham as eleições municipais em todo país no início de setembro, ocupando a maioria dos postos nos sovietes locais, fábricas e comitês de soldados. Lev Trotski é eleito o representante máximo do soviete de Petrogrado.
O cerco aperta-se
No início do mês de setembro, a realização de um congresso geral dos sovietes de toda a Rússia estava na ordem do dia, que o governo provisório tentava a todo custo impedir. Os bolcheviques haviam ganho a maioria nos sovietes de Petrogrado, Moscou, Odessa e Kiev, e advogavam que essas organizações tomassem o poder, decretassem a paz imediata e entregassem o controle da industria aos operários e as terras, aos camponeses. Apesar da crescente agitação popular, a vida na Rússia prosseguia como se não se estivesse à beira de uma revolução, com as senhoras da pequena burguesia a tomar chá todas as tardes, com os seus serões de poesia, e com os teatros cheios para ver as novas peças de bailado e os salões dos hotéis repletos de jovens oficiais, que galanteavam jovens prendadas, que continuavam com as suas classes de francês, todos desejando o regresso do czar ou, ainda que os alemães invadissem a Rússia e resolvessem o problemas dos criados, que agora se haviam rebelado. Os cassinos continuavam abertos até o amanhecer, com apostas que chegavam aos milhares de rublos, e os cafés eram frequentados por prostitutas, que vestiam casacos de pele e ostentavam jóias caras. Até o Exército da Salvação, uma novidade na Rússia daqueles dias, continuava a ocupar as ruas com a sua bandinha, convidando os russos para os seus encontros.
O Instituto Smólni, às margens do rio Neva, era o quartel-general do soviete de toda a Rússia e também do soviete de Petrogrado. Construído no tempo do império, era uma escola de freiras para as filhas da nobreza russa e tinha sido tomado pelas organizações revolucionárias. Os sovietes, os comitês de fábrica, os sindicatos haviam ocupado grandes parte das salas do grande edifício, num corrupio de soldados e operários dia e noite, conspirando a revolução, dormindo às centenas, espalhados no chão, por toda a parte. Um refeitório no andar térreo, organizado pelos sovietes, com grupos de voluntários, homens e mulheres, a preparar sopas de couve com carne, em grandes caldeirões, juntamente com o pão preto, dava de comer a milhares de operários que acorriam ao edifício. No meio dessa agitação, com o governo provisório pretendendo extinguir todas as organizações independentes de operários, soldados e camponeses, o congresso dos sovietes de toda a Rússia é marcado para o dia 25 de outubro (7 de novembro pelo atual calendário).
No início de outubro, por iniciativa de Trotski, o soviete de Petrogrado cria um comitê militar revolucionário, que toma a seu comando as tropas de exército sediadas na cidade, cerca de 60 mil homens, e que constituíram desde sempre a maior força armada e organizada a serviço da revolução, que mantiveram a ordem nos dias tumultuados de fevereiro e que neutralizaram o contragolpe do general Kornilov. Com a famosa guarnição de Petrogrado sob o seu controle, os bolcheviques têm praticamente o poder em mãos mas preferem esperar pelo congresso para legitimar a sua tomada. Numa última jogada política, os eseristas de esquerda aderem aos bolcheviques e fazem um pacto de ação. Do outro lado das barricadas que se formam, o governo provisório, pressentindo o perigo, convoca a Petrogrado alguns batalhões mais leais, de guarnições afastadas, e instala a artilharia de junkers, alunos da escola militar, em frente ao Palácio de Inverno. É decretado o estado de sítio e os cossacos aparecem nas ruas da cidade. Um comitê de salvação nacional é criado pela coligação de partidos que formam o governo. A tensão aumenta mas o partido de Lênin não dá sinais de que vá iniciar uma revolta. Numa reunião alargada do comitê central do partido bolchevique, com a presença de representantes do soviete de Petrogrado, dos comitês de fábrica, dos ferroviários e dos responsáveis militares, no dia 29 de outubro, Lênin vê aprovada a sua proposta de sublevação, com 19 votos a favor, dois votos contra e duas abstenções.
Todo o poder aos sovietes
O assalto ao poder pelos bolcheviques foi planejado de forma a coincidir com a abertura dos trabalhos do congresso dos sovietes de toda a Rússia. Na madrugada do dia 7 de novembro, as centrais telefônica e telegráfica, assim como o banco do estado, foram tomados por regimentos da guarnição de Petrogrado e pelos guardas vermelhos, que já estavam de regresso à ação com o seu fervor revolucionário. Blindados com bandeiras vermelhas dos sovietes ocuparam posições no centro da cidade, isolando as imediações ao Palácio de Inverno. Em Kronstadt, 25 mil marinheiros armados mantiveram-se em estado de alerta para a defesa da revolução. O governo provisório continuou em funções, mas já não tinha qualquer influência no rumo dos acontecimentos. Kerenski permaneceu até o nascer do dia no quartel-general do estado maior, impossibilitado de agir. Os cossacos e os junkers das escolas militares de Petrogrado foram neutralizados e os batalhões provenientes do interior, barrados à entrada da cidade, com os soldados aderindo imediatamente à revolução.
Com o sol, a revolução ganhou as ruas de Petrogrado. Milhares de trabalhadores, homens e mulheres, uniram-se às tropas na espera do desenrolar dos acontecimentos. Havia ainda um vácuo no controle do poder mas não se verificaram desordens, saques ou motins de qualquer espécie. Kerenski abandonou a cidade num automóvel para se juntar aos regimentos que havia convocado, na tentativa de fazê-los marchar sobre Petrogrado. No Palácio de Inverno, reinava a confusão. Secretários e funcionários andavam para todo o lado sem saber onde estavam os seus superiores, sem notícias do mundo exterior. Alguns regimentos de jovens oficiais das escolas militares aguardavam aquartelados há dias o ataque bolchevique, mas não tinham a certeza se este viria ou não. Os Batalhões Femininos, em cujas fileiras alinhavam voluntárias da pequena burguesia, também estavam no edifício, como última trincheira da cambaleante aristrocracia russa. Durante o dia, do lado de fora do palácio, soldados aguardaram ordens do comitê militar revolucionário, garantindo que não abririam fogo, pois não disparariam contra mulheres russas.
No Instituto Smólni, os trabalhos do congresso dos sovietes de toda a Rússia começaram quando passavam das dez da noite, coincidindo com o início dos bombardeamentos ao Palácio de Inverno. O putch foi rápido e indolor. Os junkers abandonaram as espingardas nas tricheiras e debandaram, deixando o palácio a mercê dos soldados e da Guarda Vermelha. O governo provisório foi detido. No edifício da Duma Municipal, que ainda se mantinha em funções, foi criado mais um comitê de salvação nacional para organizar a resistência aos bolcheviques. Com os rebentamentos a serem ouvidos por toda a cidade, as facções menchevique e eserista abandonaram em protesto o congresso dos sovietes. Em completa maioria, os bolcheviques fizeram aprovar uma moção onde o congresso assume o poder na Rússia. Inicialmente relutantes, os eseristas de esquerda aderiram à estratégia leninista, esquecendo as diferenças. Eram quase seis da manhã quando foi anunciado que o 12º exército enviava saudações ao congresso dos sovietes e informava que um comitê militar havia tomado o comando da frente norte. Lênin e os operários de Petrogrado haviam derrubado o governo provisório, autenticado o golpe no congresso dos sovietes e agora só faltava que toda a Rússia aderisse à revolução. Poucos acreditavam que os bolcheviques se mantivesem mais de três dias no poder, a não ser Lênin e Trótski e os milhares de operários e soldados rasos que os seguiam naqules dias.
A paz a qualquer custo
No dia a seguir ao golpe bolchevique, a tranquilidade aparente regressou ao quotidiano de Petrogrado. As lojas e os restaurantes estavam abertos, os operários regressaram ao trabalho, transportados pelos bondes do serviço público, que continuaram em atividade. Para manter a ordem, os bolcheviques proibiram os saques e as desordens, prometendo a pena de morte para os especuladores. A duma municipal e o comitê de salvação mantiveram-se reunidos em permanência, contabilizando os apoios na resistência. Os jornais, que circulavam como habitualmente, insurgiam-se contra o golpe. Naquele seu primeiro dia de vida, o governo dos bolcheviques não começou muito bem. Os ferroviários não reconheciam os bolcheviques e os funcionários dos telégrafos e dos correios haviam se negado a colaborar. No Smólni, os bolcheviques não tinham mãos a medir com as novas incumbências, como tomar conta do governo, manter a ordem na cidade, alastrar a insurreição às províncias, preparar a defesa contra Kerenski, que estava se preparando para contra-atacar.
No Instituto Smólni, o congresso dos sovietes reunido era o próprio governo em funções. As medidas do nascente estado soviético eram aprovadas ali mesmo, no calor das discussões, com operários, soldados e camponeses participando juntamente com os bolcheviques. Os pontos de vista da cúpula bolchevique não eram partilhados por todas as facções presentes no congresso, mas Lênin sempre soube levar a sua causa a bom porto, ganhando com as suas palavras o apoio da maioria. Presente no congresso, John Reed fez a seguinte descrição do fundador do estado soviético: “Figura pequena e entroncada, de grande cabeça calva e protuberante, metida nos ombros, vestia um terno coçado em que as calças eram demasiado compridas. Nada tinha de especial para ser um ídolo das multidões, mas foi amado e venerado como poucos dirigentes na história. Estranho dirigente popular - dirigente só pelo poder do intelecto, sem brilho, sem humor, intransigente e desprendido, sem idiossincrasias pitorescas - mas com o poder de explicar idéias profundas em termos simples, aliando a sensatez a um grande arrojo intelectual”. Naquele segundo dia de trabalhos, ovacionado pelos milhares de delegados ao congresso, Vladimir Lênin apresentou à votação o 1º decreto do novo governo, o decreto da paz, que foi aprovado por unanimidade. Aos governantes dos países beligerantes, propôs uma trégua imediata, seguida de conversações formais em que a paz tinha que ser obtida qualquer custo, nem que isto significasse a entrega de território aos alemães, para satisfação das suas exigências.
Noite adentro, os bolcheviques seguiram alinhavando o tecido em que se iria coser o embrião da nova sociedade. Lênin apresentou à votação o segundo decreto da história do poder soviético, em que propunha a abolição da propriedade privada da terra, com todas as propriedades pertencentes à coroa, aos latifundiários, à igreja, incluindo o gado e as alfaias agrícolas, postos à disposição dos comitês de terra locais e sovietes camponeses. O decreto foi aprovado com apenas um voto contra e os bolcheviques passaram à fase seguinte. Eram duas e meia da madrugada quando Kamenev anunciou a constituição do poder que vigoraria até à realização da assembléia constituinte, com a criação do Conselho dos Comissários do Povo. Lênin era o presidente do conselho, Trotski, o responsável pela relações exteriores, e Stálin ficou com a pasta das nacionalidades. Os eseristas, em menor número, também estavam representados no novo governo. A constituição do conselho dos comissários do povo foi a votos, vencendo por maioria, e, a seguir, foram eleitos os novos representantes do soviete geral de toda a Rússia, onde os bolcheviques ocuparam a maioria dos assentos.
Apesar do abandono dos mencheviques e dos eseristas de direita, muitas outras facções políticas permaneceram ainda no congresso, legitimando a ação bolchevique, participando na constituição do novo governo. A revolução russa tinha sido, até ali, um constante processo de discussão dos caminhos do país, e continuou a sê-lo mesmo depois da tomada do Palácio de Inverno. Recorde-se que Lênin apostou no lema “todo o poder aos sovietes” quando os bolcheviques ainda não eram a maioria e, mais tarde, num congresso maioritário, continuou a debater as estratégias da revolução, tentando sempre reunir o consenso dos muitos grupos revolucionários representados no encontro. Os decretos aprovados foram sempre objeto de acesa discussão, num clima de grande democracia. Lênin sabia que os operários e camponeses tinham que sair unidos daquele congresso porque os esperava um vendaval lá fora. O caminho era longo e instável.
O regime de partido único
Os bolcheviques haviam chegado ao poder e agora não restava outra alternativa senão defendê-lo com unhas e dentes. Desde o primeiro instante, a jovem nação foi atacada por todos os lados. Com o tratado de Brest Litovski, os russos acordaram a paz com os alemães, mas a guerra não tardou em chegar. Antigos generais czaristas, comandando tropas de voluntários da burguesia russa, invadiram o país em várias frentes, com o apoio des tropas inglesas e francesas. Foi o início da guerra civil, que durou até 1922, com a vitória do Exército Vermellho, brilhantemente liderado por Trotski. Neste período, chamado de “comunismo de guerra”, toda a produção foi confiscada pelo estado em virtude do esforço de guerra. A nível interno, as medidas drásticas não se fizeram por esperar. Seguindo o exemplo clássico de Robespierre, os bolcheviques não hesitaram em utilizar a força contra os que se puseram no caminho da revolução. Em janeiro de 1918, a assembleia constituinte, a quem deveria ter sido entregue o poder, foi dissolvida. Poucos dias depois, um terceiro congresso dos sovietes de toda a Rússia se declarou depositário único do poder e entregou o governo ao Conselho dos Comissários do Povo. O Partido Comunista passou a ser o único partido legal. Em agosto, já depois do início da guerra civil, a família real dos Romanov é fuzilada. No X congresso do partido, em 1921, foi proibida a existência de facções no seio da própria organização.
O Estádio Lênin
Quem combinava os meus encontros com a russinha Lídia pelo telefone era Valôdia, apelido de Vladimir, o primeiro russo com quem travei amizade na Lumumba. Ele vivia no quarto ao lado do meu e nos entendíamos em francês. Um dia, as aulas ainda não tinham começado, aparece com dois bilhetes para o futebol e me convida para ver a URSS enfrentar a Polônia no Estádio Lênin. Os soviéticos venceram o embate por dois a zero mas a emoção maior deu-se antes do jogo. Minutos antes do pontapé inicial, o estádio, com capacidade para cem mil pessoas, estava com a sua lotação pela metade. De repente, milhares de soldados do exército, da tropa do serviço militar obrigatório, começam a entrar por todas as portas de acesso às arquibancadas. Levei um susto e até pensei numa situação de perigo, sei lá, um qualquer ato terrorista, ou ainda um golpe de estado. Valôdia riu e me tranquilizou. Como o exército soviético era muito grande, com mais de 7 milhões de efetivos, sempre havia pessoal disponível para encher uma arquibancada. Nos cinemas, havia sempre um batalhão, a qualquer hora em qualquer uma das centenas de salas de Moscou. Após a subida de Garbatchov ao poder e a perestroika, quando o rock tomou de assalto o país, os concertos saíram do submundo para estádios repletos de soldados, que não hesitaram em aproveitar os ventos de liberdade para requebrar o corpo ao som das guitarras elétricas. Até os brasileiros do grupo Engenheiros do Hawaii tiveram o privilégio de uma platéia destas quando atuaram em Moscou em novembro de 1989 no único show em que a sala de espetáculos não foi ocupada apenas pelo brasileiros da Lumumba e seus amigos.
Em 1985, voltei ao Estádio Lênin para assistir o Brasil ser campeão do mundo em (...), vencendo a (....) por um a zero. Chovia a cântaros e ficamos completamente encharcados. Apesar da chuva, o grupo de brasileiros fez um berreiro que chamou a atenção do estádio inteiro. Imaginem se tivessem deixado passar os instrumentos de percussão, que a polícia confiscou na entrada. Marcos, Zau e eu não fomos com os brasileiros ao estádio mas antes com Misha e Gênia (Michail e Evgueni, respectivamente), os nossos primeiros amigos moscovitas, que aproveitaram que estavam conosco para berrar como se fossem estrangeiros, já que aos soviéticos não eram permitidas tais manifestações nas provas esportivas. Duas semanas mais tarde, decorreu no estádio a abertura do festival da juventude dos países socialistas, que se realizava periodicamente e era uma montra da arte, cultura e desporto dos países que giravam na órbita de Moscou. Eu vivia a quatro quilómetros do estádio e assistia pela televisão. Onde eu morava, a chuva continuava mas no estádio fazia sol. Os soviéticos, nos dias de festa, costumavam limpar o céu onde iriam decorrer as solenidades oficiais, bombardeando um produto químico nas nuvens com a ajuda de aviões da força aérea.
No dia 7 de novembro, quando as temperaturas já se aproximavam do zero grau centígrado, Zau, Marcos e eu fomos ao centro de Moscou, juntamente com mais alguns brasileiros da Lumumba. O trânsito havia sido encerrado nas ruas adjacentes ao Kremlin, coração do estado soviético, e milhares de pessoas esperavam a hora dos fogos de artifício, uma tradição que remontava aos tempos imperiais. A festa oficial tinha sido à tarde, com o Exército Vermelho e os mísseis a desfilar na Praça Vermelha, mas esta só podia ser vista pela televisão, pois os lugares na praça eram reservados a representantes dos sindicatos de trabalhadores de toda a União Soviética e demais instituições. Os chefes de estado convidados ocupavam lugar na tribuna de honra, que era o cimo do mausoléu de Lênin, ao lado dos dirigentes soviéticos. Para as massas, estava reservado o festival de fogos de artifício, que se repetia nos demais feriados ao longo do ano. Após o desmembramento da União Soviética, a data da revolução russa de 1917 deixou de ser assinalada oficialmente pelos países que então se formaram, a não ser alguns poucos saudosistas em idade avançada que teimam em sair à rua com bandeiras vermelhas.
Os dias que abalaram o mundo
A revolução russa de 1917 foi um dos fatos mais importantes da história contemporânea e viria a marcar profundamente o século XX. Trabalhadores, intelectuais e artistas de todo o planeta saudaram a nova nação comunista nos seus primeiros anos de existência como um sopro de renovação num mundo velho que havia acabado de sair da 1ª Guerra Mundial*. Novos ideais de justiça social adquiriam grande projeção, entusiasmando as populações dos países ocidentais, que vislumbravam outros horizontes com o caminho aberto pelo primeiro governo de operários, camponeses e soldados do mundo. No olho do furacão, Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin, o homem que iria guiar os milhões de deserdados do império russo na tomada do poder. Para chegar lá, acreditou sempre em suas idéias e não desviou um milímetro do rumo traçado pacientemente nos anos de exílio, transformando em poucos meses o seu pequeno partido na vanguarda da revolução.
Como todo mundo deve saber, uma revolução se dá quando uma classe social chega ao poder, usurpando a propriedade dos meios de produção e controlando a máquina do estado. Na história contemporânea, poucas foram as revoluções e muitos os golpes palacianos que, de revolucionários, só tiveram mesmo o nome. O golpe dos militares brasileiros em 1964 levou o nome de Revolução de Março sem o sê-lo. No Brasil, só houve uma revolução, a Revolução de 1930, quando foram derrubadas as oligarquias da República Velha. Na ocasião, os grandes latinfudiários perderam o controle do país para a crescente burguesia brasileira, num processo que se convencionou chamar de “revolução burguesa”. As revoluções também começam por golpes, mas a manutenção ou não das instituições vigentes é que vai definir se houve ou não uma revolução. No caso soviético, a Rússia passou por duas revoluções naquele ano de 1917. Em fevereiro, quando o czar abdica, empurrado pela revolta popular, e, passados poucos meses, em outubro, quando os bolcheviques chegam ao poder.
Quando o czarismo é derrubado, a situação da Rússia era catastrófica. Com três anos de guerra, a fome e as epidemias alastravam-se pelo país. A desorganização era igual na frente de guerra, com deserções em massa e os soldados não podendo combater, vencidos pelo frio e pela falta de alimentos. Para conter o crescente descontentamento, a repressão aumentava por todo o país, com o czar sendo influenciado por Rasputin, o sinistro camponês que praticamente controlava as decisões do governo. O isolamento cada vez maior do czar Nicolau II, com as suas tropas a passarem para o lado do inimigo, leva a que uma aliança entre os camponeses ricos e democratas promovam a insurreição que derruba o trono dos Romanov em 27 de fevereiro (8 de março pelo atual calendário). Foi decretada a liberdade de imprensa e de associação partidária e abolida a pena de morte para os crimes políticos. Quando Nicolau II é deposto, os bolcheviques eram uma pequena seita política* que iria rapidamente ganhar a confiança do povo russo e mudar o rumo dos acontecimentos no decorrer de poucos meses.
Glossário da revolução russa
Para entender a revolução russa, é primeiro necessário conhecer o significado das múltiplas organizações russas que compunham o espectro político do país em 1917. Quem bem descreveu o emaranhado de siglas, partidos e comitês operários foi o jornalista John Reed, em cujo relato me baseei para escrever as seguintes linhas. Convém salientar que, como escreve Reed, que presenciou os dias da revolução, a população russa, mau grado o atraso do país em relação à Europa Ocidental, era bastante politizada, participando ativamente nas organizações populares, consumindo com voracidade o que era publicado pelas dezenas de jornais diários existentes, representantes dos mais variados grupos políticos, que obtinham tiragens diárias de milhões de exemplares. Em todas as cidades, na maior parte das vilas e na frente de combate, toda e qualquer facção política tinha o seu jornal. Milhares de panfletos inundavam diariamente as fábricas, as ruas e as tendas de campanha. Os russos estavam aprendendo a ler e devoravam publicações sobre história, política, economia, as obras dos grandes escritores russos. Reed conta em seu livro que, quando visitou o 12º exército, na frente perto de Riga, onde soldados descalços adoeciam na lama das trincheiras, a primeira que coisa que lhe perguntaram é se tinha trazido “alguma coisa para ler”. Este processo de conscientização política das populações na Rússia vinha crescendo desde 1905, quando Nicolau II mandou disparar contra uma manifestação pacífica de camponeses, originando a Revolução Russa de 1905, o que propiciou o surgimento de um novo tipo de organização independente, formada por representantes das classes trabalhadoras, na cidade e no campo, os “sovietes”.
Durante séculos, desde Ivan IV, a pirâmide social na Rússia era composta por três classes: os boiardos, os kulaks e os mujiques. No topo, estava o czar, que dividia a administração do território com os boiardos, que eram os aristocratas russos. As terras dos boiardos eram cultivadas pelos mujiques, os camponeses, que, até o ano de 1861, trabalharam sob o regime de servidão. No campo, havia também uma pequena burguesia agrária, os kulaks, os camponeses ricos, donos de pequenas extensões de terra. Estes três grupos sociais mantiveram sempre um ódio ancestral recíproco, resultado de uma tensão social constante em virtude da miséria da imensa maioria da população. Nas cidades, um operariado crescente ganhava consciência política num capitalismo primário e selvagem, convivendo com outros setores da pequena burguesia urbana.
Entre a infinidade de organizações que existiam, mencionarei as que tiveram um papel mais proeminente no curso dos acontecimentos de 1917:
1) Cadetes: os constitucionalistas-revolucionários, (das iniciais K e D, em que John Reed translitera o nome em russo para uma transcrição fonética aproximada). No tempo do czar, era o partido da reforma política, constituído por liberais da burguesia industrial, equivalente ao Partido Progressista da América, formado por Theodore Roosevelt em 1912.
2) Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR): eram os socialistas-marxistas. Num congresso do partido, em 1903, dividiu-se em duas facções, a maioria (bolshinstvô) e a minoria (menshinstvô), originando os nomes “bolchevique” (membro da maioria) e “menchevique”, membro da minoria. Cada ala formou um partido, colocando ambas o mesmo nome de PSODR. Apesar da nomenclatura, desde a Revolução de 1905 os bolcheviques eram a minoria enquanto os mencheviques estavam em posição maioritária nos sovietes de operários e soldados.
3) Mencheviques: era composto por intelectuais que acreditavam na construção do socialismo pela via política. Consideravam que a Rússia não reunia as condições para uma revolução deste gênero pois necessitava antes percorrer outras etapas, construindo um capitalismo democrático.
4) Bolcheviques: inertes até a chegada de Lênin do exílio, mudam o nome para Partido Comunista e pregam a insurreição imediata, defendendo a entrega do poder aos sovietes e a extinção da propriedade privada e dos latifúndios. A sua doutrina foi de encontro aos anseios não só do proletariado urbano e dos soldados cansados de guerra, mas também de parte considerável dos camponeses pobres.
5) Partido Socialista Revolucionário: os eseristas (SR’s), das iniciais de seu nome em russo. Começou como uma organização armada camponesa, que defendia a abolição da propriedade privada na terra, mas, após a revolução de fevereiro de 1917, dividiu-se em eseristas de direita e de esquerda, com os primeiros a representar os camponeses ricos, os intelectuais e populações dos distritos rurais longínquos. Os eseristas de esquerda partilhavam a mesma cartilha bolchevique, defendendo a expropriação sem indenizações dos grandes latifúndios, e chegaram a ocupar cargos no governo soviético, nomeadamente, na pasta da agricultura.
6) Soviete: em russo, a palavra significa “conselho”, associada organizações populares de trabalhadores, soladados e camponeses desde a revolução de 1905. A maior parte dos sovietes de operários e soldados aglutiram-se após a revolução de fevereiro de 1917, sendo que os soviete dos camponeses juntou-se aos outros dois após a tomada do poder pelos bolcheviques. O orgão que aglutinava os sovietes urbanos era o TsIK, o Comitê Executivo Central de toda a Rússia dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados.
7) Duma: significa qualquer coisa como “organismo deliberativo”. A Duma Imperial ainda funcionou de um modo democrático após o fim do czarismo mas desapareceu em outubro de 1917.
8) Comitês do exército: foram formados por soldados na frente de combate para diluir a influências dos oficiais do antigo regime após a revolução de fevereiro. Devido ao colapso administrativo do exército, em consequência da guerra mal conduzida, em muitos casos tiveram que assumir o próprio comando das tropas.
9) Guardas Vermelhos: operários armados, formados pela primeira vez na Revolução de 1905 e que reapareceram em fevereiro de 1917, quando foi necessária uma força para manter a ordem nas cidades. Em todas as crises da revolução, os guardas vermelhos foram chamados a intervir, sem qualquer treino ou disciplina, mas “cheios de fervor revolucionário” (Reed dixit).
10) Guardas brancos: voluntários da burguesia que surgiram nos dias que antecederam a Revolução de Outubro, para tentar impedir os bolcheviques de abolirem a propriedade privada.
Com a revolução bolchevique, foram extintas todas as organizações políticas, sendo criado o Conselho dos Comissários do Povo, o único organismo que poderia existir durante o período que criaria as bases para a construção do comunismo, a “ditadura do proletariado”, e que vigoraria até o completo desaparecimento do estado.
Os homens e suas idéias mirabolantes
Segundo alguns historiadores, o socialismo terá surgido durante a revolução francesa, como uma das muitas correntes de pensamento daquele período, mas foi com Karl Marx e Frederico Engels que ganhou forma e conteúdo com a publicação do Manifesto Comunista em 1848. Nos anos seguintes, os dois pensadores alemães iriam produzir o maior estudo econômico e político da civilização européia até então. Ao contrário dos socialistas da altura, os chamados “socialistas utópicos”, que imaginavam uma sociedade perfeita, Marx e Engles traçaram um caminho para a transformação da sociedade capitalista em sociedade socialista, criando uma nova linha de pensamento que se designou chamar de “socialismo científico”. Em obras como O Capital e o Materialismo Dialético, Karl Marx elabora a mais completa análise do processo civilizatório, demonstrando a inevitabilidade do comunismo com base na teoria da “luta de classes”.
A teoria marxista diz que a luta de classes é o motor que move a história do homem desde o seu princípio. O constante atrito social entre senhores e escravos, no esclavagismo, entre nobres e servos, no feudalismo, entre burgueses e operários, no capitalismo, alavancou a construção de uma sociedade que, numa visão dialética do processo histórico, caminharia no sentido da abolição do sistema de classes, o comunismo. As mudanças seriam impulsionadas pelas organizações de classe e, assim, como a burguesia depôs a nobreza, os proletários organizados iriam derrubar os capitalistas burgueses. O socialismo seria uma etapa intermediária na construção do comunismo, em que elementos do anterior sistema conviveriam com novas estruturas, num período em que a “ditadura do proletariado” gerenciaria o estado, para se defender da contra-revolução burguesa, até a sua extinção.
A revolução proletária seria, pois, inevitável, mas, como acreditava Marx, ela aconteceria num país em que o capitalismo estivesse altamente desenvolvido, “quando as contradições da sociedade se agudizasem ao máximo”, o que se pressupõe que teria que haver um longo período de evolução capitalista e que ela não poderia acontecer em países atrasados e agrícolas. Esta passagem do capitalismo ao comunismo, através do socialismo, seria financiada pela “mais valia” da produção, o lucro capitalista, que seria agora redirecionado pelo estado para a construção da nova sociedade. Por essa ótica, a Rússia de 1917, um país agrário com um pequeno proletariado urbano, não reuniria as condições para o socialismo enquanto não tivesse a sua revolução burguesa. É aí que aparece Vladimir Lênin, que traz novos contributos no plano teórico-prático da revolução socialista, definindo as perspectivas da ação revolucionária durante a fase superior do capitalismo, o imperialismo. Ao se constatar uma dinâmica reformista nos países mais industrializados, o foco revolucionário se deslocaria para os países mais atrasados. Para se chegar lá, era necessário um partido político com disciplina férrea, formado por militantes profissionais, que fosse a “vanguarda da revolução” e conduzisse os operários ao poder. Lênin também acreditava que a guerra provocaria revoluções proletárias nos países europeus, como a Alemanha, e que uma onda socialista varreria o continente. A não concretização dessa expectativa, com o ascensão do nazi-fascimo, deu espaço para que Stálin formulasse a teoria do “socialismo num só país” e instaurasse o seu regime de terror.
O comício da estação Finlândia
Após a queda do czarismo, a Rússia era governada por um governo de coalizão provisório formado pelos cadetes, pelos socialistas revolucionários (os eseristas) e pelos mencheviques. Os sovietes de operários e soldados e o dos camponeses de toda a Rússia tinham avalizado este governo até a realização de uma assemblea constituinte, marcada para dezembro. Em abril, Lênin abandona o exílio na Suíça e é recebido em apoteose pela população na estação Finlândia, em São Petersburgo*. À multidão, lançou o slogan que iria mudar o curso dos acontecimentos e ser adotado como lema de um povo: “Todo poder aos sovietes*!”. Mas, no seio do partido bolchevique, a questão não foi assim tão pacífica. Os camaradas que tinham tocado o barco interno da organização durante o exílio dos camaradas que agora chegavam com a Revolução de Fevereiro não gostaram muito de serem ultrapassados nas suas convicções. Stálin e Kámenev, burocratas que se acostumaram a com o posto de chefia na ausência do cérebro do partido, mostraram o seu desacordo, argumentando que os camaradas que estavam de regresso estavam a cometer um erro de análise conjuntural. Mas Lênin, que tinha escrito a cartilha do partido, virou o jogo no comitê central, lembrando-lhe as teses principais da revolução: abolição da propriedade privada, a nacionalização da terra e todo poder aos sovietes.
Em suas Teses de Abril, Lênin traça o caminho até a revolução com base na sua análise da conjuntura internacional. Em primeiro lugar, considera que Rússia já tinha dado o primeiro passo com a revolução burguesa e que faltava agora dar o segundo, entregando o poder aos operários e camponeses. O novo regime seria não uma república parlamentar mas sim uma república soviética. Lênin acredita que, apesar do seu partido ser minoritário naquele momento, conseguirá, com a miltância persistente, congregar a maioria e assim legitimizar a tomada do poder. A seguir, qualifica a guerra como uma “guerra de rapina”, entre nações imperialistas, contrária aos interesses do proletariado, que só devem apoiar uma guerra que deponha a burguesia, advogando a paz imediata. Por fim, o Lênin estabelece um amplo plano de nacionalizações dos meios de produção e distribuição, de toda a terra e do sistema bancário, que seriam controlados pelos sovietes.
Conta-se que Lênin, no dia a seguir a chegada do exílio, reuniu-se com o comitê central do partido pela primeira vez e enfrentou a resistência dos seus camaradas. O futuro primeiro chefe de estado soviético ouviu o que os seus pares tinham a dizer e, quando começou a falar, sempre de olhos fechados, não desviou uma linha do pensamento erigido ao longo de tantos anos de exílio. Quando terminou a sua intervenção, os demais perceberam que os cegos, até aquele momento, tinham sido eles, que não tinham descortinado o caminho da revolução.
Apesar das teorias de Lênin terem se concretizado, Stálin nunca digeriu muito bem o fato de os membros mais experientes do partido serem membros da intelectualidade. Até Trotski, que aderiu ao partido nos dias que antecederam a revolução, tinha maior influência que o próprio Stálin. O que os separava, ao fim e ao cabo, eram as suas origens sociais, pois tanto Lênin como Trótski eram filhos da pequena burguesia, enquanto Stálin era filho de operários. Estas diferenças acirraram-se após a morte prematura do pai da revolução, quando a velha guarda do partido começou a utilizar métodos pouco democráticos contra os intelectuais. Em entrevista a um jornalista alemão, Ludwig XXX, anos mais tarde, Stálin menosprezou a importância do exílio na formação revolucionária, argumentando que não era preciso viajar ao estrangeiro para se adquirir conhecimentos científicos sobre qualquer coisa. Stálin saiu poucas vezes da Rússia, sempre em deslocações rápidas, sendo que numas destas ocasiões jogou xadrez com Lênin. No entanto, como notou o jornalista, manifestava um profundo desconhecimento dos valores da cultura europeia, mesmo sendo um homem poderoso, que manteve pouco contato ao longo de sua vida com pessoas que tenham passado por um banco de universidade.
A luta continua
No verão de 1917, a situação na Rússia piorava de dia para dia. A desorganização generalizada no abastecimento das cidades, causada pela guerra, que tirava os lavradores do campo para alinhá-los nos campos de batalha, era aproveitada pelos especuladores, que açambarcavam víveres e combustível e vendiam em segredo ao exterior. As fábricas fechavam, as linhas férreas estavam quase paralisadas, os roubos e os assaltos proliferavam e a população, na sua maioria, mulheres com os filhos ao colo, tinha que suportar horas na fila, com as suas senhas de racionamento, para conseguir a dose diária de pão, leite, açúcar e tabaco, que era de uma libra (cerca de 500g), mas que foi diminuindo até chegar aos 125g nos dias anteriores ao putch bolchevique. Os agentes da antiga polícia política czarista ainda se mantinham na ativa, juntamente com toda espécie de organizações clandestinas, financiados por industriais e grandes latinfudiários, conjurando planos secretos deter o avanço das forças populares. A política do governo provisório constava de reformas ineficazes e do aumento das medidas repressivas, com a proibição dos jornais revolucionários e o envio dos cossacos para conter os protestos populares nas províncias. A balança da Revolução de Fevereiro, que colocara em dois pratos opostos os sovietes e o governo provisório, o povo e a classe média, estava começando a pender para um dos lados.
Com a sua política de condenação à guerra, o grande problema russo que o governo provisório não havia resolvido, e de reivindicação do poder aos representantes diretos dos trabalhadores, soldados e camponeses, o partido de Lênin atraía milhões de pessoas para o seu discurso. Em junho, toma posse o governo provisório de Aleksandr Kerenski, um eserista que havia sido ministro da Guerra, ordenando uma ofensiva no campo de batalha. Com o falhanço militar russo em 20 de julho, os alemães invadem a Rússia e, em Petrogrado, estala a revolta popular, um levantamento desorganizado dos operários, que ocuparam o palácio de Táurida, antiga residência do czar e onde estava instalado o governo provisório. Com o falhanço da investida, Kerenski, convertido em primeiro-ministro, inicia uma caça aos bolcheviques, que apoiaram o movimento, enviando centenas de militantes para a prisão, entre eles Lev Trotski, que havia aderido à política de Lênin*. Este, por seu turno, consegue escapar, escondido por Stálin.
Em agosto, o sexto congresso do partido bolchevique realiza-se na clandestinidade e confirma as Teses de Abril de Lênin como linha programática. No final do mês, a cidade de Riga cai em mãos dos alemães e Kerenski demite o general Kornilov, que, por seu turno, decide avançar sobre Petrogrado, numa tentativa de golpe militar patrocinada por ingleses e franceses, mas a sua investida é travada pela população armada da cidade, com os bolcheviques na primeira fila da resistência. O general golpista é detido pelos comitês de soldados, ministros e generais do governo são demitidos e o gabinete de Kerenski cai. Os bolcheviques, que são libertados das cadeias na sequência do golpe falhado, são os primeiros a apoiar Aleksandr Kerenski na formação de um novo governo. A estratégia do partido de Lênin era simples: antes um governo provisório do que o regresso da ditadura. Com esta atitude, cresce a influência dos bolcheviques, que ganham as eleições municipais em todo país no início de setembro, ocupando a maioria dos postos nos sovietes locais, fábricas e comitês de soldados. Lev Trotski é eleito o representante máximo do soviete de Petrogrado.
O cerco aperta-se
No início do mês de setembro, a realização de um congresso geral dos sovietes de toda a Rússia estava na ordem do dia, que o governo provisório tentava a todo custo impedir. Os bolcheviques haviam ganho a maioria nos sovietes de Petrogrado, Moscou, Odessa e Kiev, e advogavam que essas organizações tomassem o poder, decretassem a paz imediata e entregassem o controle da industria aos operários e as terras, aos camponeses. Apesar da crescente agitação popular, a vida na Rússia prosseguia como se não se estivesse à beira de uma revolução, com as senhoras da pequena burguesia a tomar chá todas as tardes, com os seus serões de poesia, e com os teatros cheios para ver as novas peças de bailado e os salões dos hotéis repletos de jovens oficiais, que galanteavam jovens prendadas, que continuavam com as suas classes de francês, todos desejando o regresso do czar ou, ainda que os alemães invadissem a Rússia e resolvessem o problemas dos criados, que agora se haviam rebelado. Os cassinos continuavam abertos até o amanhecer, com apostas que chegavam aos milhares de rublos, e os cafés eram frequentados por prostitutas, que vestiam casacos de pele e ostentavam jóias caras. Até o Exército da Salvação, uma novidade na Rússia daqueles dias, continuava a ocupar as ruas com a sua bandinha, convidando os russos para os seus encontros.
O Instituto Smólni, às margens do rio Neva, era o quartel-general do soviete de toda a Rússia e também do soviete de Petrogrado. Construído no tempo do império, era uma escola de freiras para as filhas da nobreza russa e tinha sido tomado pelas organizações revolucionárias. Os sovietes, os comitês de fábrica, os sindicatos haviam ocupado grandes parte das salas do grande edifício, num corrupio de soldados e operários dia e noite, conspirando a revolução, dormindo às centenas, espalhados no chão, por toda a parte. Um refeitório no andar térreo, organizado pelos sovietes, com grupos de voluntários, homens e mulheres, a preparar sopas de couve com carne, em grandes caldeirões, juntamente com o pão preto, dava de comer a milhares de operários que acorriam ao edifício. No meio dessa agitação, com o governo provisório pretendendo extinguir todas as organizações independentes de operários, soldados e camponeses, o congresso dos sovietes de toda a Rússia é marcado para o dia 25 de outubro (7 de novembro pelo atual calendário).
No início de outubro, por iniciativa de Trotski, o soviete de Petrogrado cria um comitê militar revolucionário, que toma a seu comando as tropas de exército sediadas na cidade, cerca de 60 mil homens, e que constituíram desde sempre a maior força armada e organizada a serviço da revolução, que mantiveram a ordem nos dias tumultuados de fevereiro e que neutralizaram o contragolpe do general Kornilov. Com a famosa guarnição de Petrogrado sob o seu controle, os bolcheviques têm praticamente o poder em mãos mas preferem esperar pelo congresso para legitimar a sua tomada. Numa última jogada política, os eseristas de esquerda aderem aos bolcheviques e fazem um pacto de ação. Do outro lado das barricadas que se formam, o governo provisório, pressentindo o perigo, convoca a Petrogrado alguns batalhões mais leais, de guarnições afastadas, e instala a artilharia de junkers, alunos da escola militar, em frente ao Palácio de Inverno. É decretado o estado de sítio e os cossacos aparecem nas ruas da cidade. Um comitê de salvação nacional é criado pela coligação de partidos que formam o governo. A tensão aumenta mas o partido de Lênin não dá sinais de que vá iniciar uma revolta. Numa reunião alargada do comitê central do partido bolchevique, com a presença de representantes do soviete de Petrogrado, dos comitês de fábrica, dos ferroviários e dos responsáveis militares, no dia 29 de outubro, Lênin vê aprovada a sua proposta de sublevação, com 19 votos a favor, dois votos contra e duas abstenções.
Todo o poder aos sovietes
O assalto ao poder pelos bolcheviques foi planejado de forma a coincidir com a abertura dos trabalhos do congresso dos sovietes de toda a Rússia. Na madrugada do dia 7 de novembro, as centrais telefônica e telegráfica, assim como o banco do estado, foram tomados por regimentos da guarnição de Petrogrado e pelos guardas vermelhos, que já estavam de regresso à ação com o seu fervor revolucionário. Blindados com bandeiras vermelhas dos sovietes ocuparam posições no centro da cidade, isolando as imediações ao Palácio de Inverno. Em Kronstadt, 25 mil marinheiros armados mantiveram-se em estado de alerta para a defesa da revolução. O governo provisório continuou em funções, mas já não tinha qualquer influência no rumo dos acontecimentos. Kerenski permaneceu até o nascer do dia no quartel-general do estado maior, impossibilitado de agir. Os cossacos e os junkers das escolas militares de Petrogrado foram neutralizados e os batalhões provenientes do interior, barrados à entrada da cidade, com os soldados aderindo imediatamente à revolução.
Com o sol, a revolução ganhou as ruas de Petrogrado. Milhares de trabalhadores, homens e mulheres, uniram-se às tropas na espera do desenrolar dos acontecimentos. Havia ainda um vácuo no controle do poder mas não se verificaram desordens, saques ou motins de qualquer espécie. Kerenski abandonou a cidade num automóvel para se juntar aos regimentos que havia convocado, na tentativa de fazê-los marchar sobre Petrogrado. No Palácio de Inverno, reinava a confusão. Secretários e funcionários andavam para todo o lado sem saber onde estavam os seus superiores, sem notícias do mundo exterior. Alguns regimentos de jovens oficiais das escolas militares aguardavam aquartelados há dias o ataque bolchevique, mas não tinham a certeza se este viria ou não. Os Batalhões Femininos, em cujas fileiras alinhavam voluntárias da pequena burguesia, também estavam no edifício, como última trincheira da cambaleante aristrocracia russa. Durante o dia, do lado de fora do palácio, soldados aguardaram ordens do comitê militar revolucionário, garantindo que não abririam fogo, pois não disparariam contra mulheres russas.
No Instituto Smólni, os trabalhos do congresso dos sovietes de toda a Rússia começaram quando passavam das dez da noite, coincidindo com o início dos bombardeamentos ao Palácio de Inverno. O putch foi rápido e indolor. Os junkers abandonaram as espingardas nas tricheiras e debandaram, deixando o palácio a mercê dos soldados e da Guarda Vermelha. O governo provisório foi detido. No edifício da Duma Municipal, que ainda se mantinha em funções, foi criado mais um comitê de salvação nacional para organizar a resistência aos bolcheviques. Com os rebentamentos a serem ouvidos por toda a cidade, as facções menchevique e eserista abandonaram em protesto o congresso dos sovietes. Em completa maioria, os bolcheviques fizeram aprovar uma moção onde o congresso assume o poder na Rússia. Inicialmente relutantes, os eseristas de esquerda aderiram à estratégia leninista, esquecendo as diferenças. Eram quase seis da manhã quando foi anunciado que o 12º exército enviava saudações ao congresso dos sovietes e informava que um comitê militar havia tomado o comando da frente norte. Lênin e os operários de Petrogrado haviam derrubado o governo provisório, autenticado o golpe no congresso dos sovietes e agora só faltava que toda a Rússia aderisse à revolução. Poucos acreditavam que os bolcheviques se mantivesem mais de três dias no poder, a não ser Lênin e Trótski e os milhares de operários e soldados rasos que os seguiam naqules dias.
A paz a qualquer custo
No dia a seguir ao golpe bolchevique, a tranquilidade aparente regressou ao quotidiano de Petrogrado. As lojas e os restaurantes estavam abertos, os operários regressaram ao trabalho, transportados pelos bondes do serviço público, que continuaram em atividade. Para manter a ordem, os bolcheviques proibiram os saques e as desordens, prometendo a pena de morte para os especuladores. A duma municipal e o comitê de salvação mantiveram-se reunidos em permanência, contabilizando os apoios na resistência. Os jornais, que circulavam como habitualmente, insurgiam-se contra o golpe. Naquele seu primeiro dia de vida, o governo dos bolcheviques não começou muito bem. Os ferroviários não reconheciam os bolcheviques e os funcionários dos telégrafos e dos correios haviam se negado a colaborar. No Smólni, os bolcheviques não tinham mãos a medir com as novas incumbências, como tomar conta do governo, manter a ordem na cidade, alastrar a insurreição às províncias, preparar a defesa contra Kerenski, que estava se preparando para contra-atacar.
No Instituto Smólni, o congresso dos sovietes reunido era o próprio governo em funções. As medidas do nascente estado soviético eram aprovadas ali mesmo, no calor das discussões, com operários, soldados e camponeses participando juntamente com os bolcheviques. Os pontos de vista da cúpula bolchevique não eram partilhados por todas as facções presentes no congresso, mas Lênin sempre soube levar a sua causa a bom porto, ganhando com as suas palavras o apoio da maioria. Presente no congresso, John Reed fez a seguinte descrição do fundador do estado soviético: “Figura pequena e entroncada, de grande cabeça calva e protuberante, metida nos ombros, vestia um terno coçado em que as calças eram demasiado compridas. Nada tinha de especial para ser um ídolo das multidões, mas foi amado e venerado como poucos dirigentes na história. Estranho dirigente popular - dirigente só pelo poder do intelecto, sem brilho, sem humor, intransigente e desprendido, sem idiossincrasias pitorescas - mas com o poder de explicar idéias profundas em termos simples, aliando a sensatez a um grande arrojo intelectual”. Naquele segundo dia de trabalhos, ovacionado pelos milhares de delegados ao congresso, Vladimir Lênin apresentou à votação o 1º decreto do novo governo, o decreto da paz, que foi aprovado por unanimidade. Aos governantes dos países beligerantes, propôs uma trégua imediata, seguida de conversações formais em que a paz tinha que ser obtida qualquer custo, nem que isto significasse a entrega de território aos alemães, para satisfação das suas exigências.
Noite adentro, os bolcheviques seguiram alinhavando o tecido em que se iria coser o embrião da nova sociedade. Lênin apresentou à votação o segundo decreto da história do poder soviético, em que propunha a abolição da propriedade privada da terra, com todas as propriedades pertencentes à coroa, aos latifundiários, à igreja, incluindo o gado e as alfaias agrícolas, postos à disposição dos comitês de terra locais e sovietes camponeses. O decreto foi aprovado com apenas um voto contra e os bolcheviques passaram à fase seguinte. Eram duas e meia da madrugada quando Kamenev anunciou a constituição do poder que vigoraria até à realização da assembléia constituinte, com a criação do Conselho dos Comissários do Povo. Lênin era o presidente do conselho, Trotski, o responsável pela relações exteriores, e Stálin ficou com a pasta das nacionalidades. Os eseristas, em menor número, também estavam representados no novo governo. A constituição do conselho dos comissários do povo foi a votos, vencendo por maioria, e, a seguir, foram eleitos os novos representantes do soviete geral de toda a Rússia, onde os bolcheviques ocuparam a maioria dos assentos.
Apesar do abandono dos mencheviques e dos eseristas de direita, muitas outras facções políticas permaneceram ainda no congresso, legitimando a ação bolchevique, participando na constituição do novo governo. A revolução russa tinha sido, até ali, um constante processo de discussão dos caminhos do país, e continuou a sê-lo mesmo depois da tomada do Palácio de Inverno. Recorde-se que Lênin apostou no lema “todo o poder aos sovietes” quando os bolcheviques ainda não eram a maioria e, mais tarde, num congresso maioritário, continuou a debater as estratégias da revolução, tentando sempre reunir o consenso dos muitos grupos revolucionários representados no encontro. Os decretos aprovados foram sempre objeto de acesa discussão, num clima de grande democracia. Lênin sabia que os operários e camponeses tinham que sair unidos daquele congresso porque os esperava um vendaval lá fora. O caminho era longo e instável.
O regime de partido único
Os bolcheviques haviam chegado ao poder e agora não restava outra alternativa senão defendê-lo com unhas e dentes. Desde o primeiro instante, a jovem nação foi atacada por todos os lados. Com o tratado de Brest Litovski, os russos acordaram a paz com os alemães, mas a guerra não tardou em chegar. Antigos generais czaristas, comandando tropas de voluntários da burguesia russa, invadiram o país em várias frentes, com o apoio des tropas inglesas e francesas. Foi o início da guerra civil, que durou até 1922, com a vitória do Exército Vermellho, brilhantemente liderado por Trotski. Neste período, chamado de “comunismo de guerra”, toda a produção foi confiscada pelo estado em virtude do esforço de guerra. A nível interno, as medidas drásticas não se fizeram por esperar. Seguindo o exemplo clássico de Robespierre, os bolcheviques não hesitaram em utilizar a força contra os que se puseram no caminho da revolução. Em janeiro de 1918, a assembleia constituinte, a quem deveria ter sido entregue o poder, foi dissolvida. Poucos dias depois, um terceiro congresso dos sovietes de toda a Rússia se declarou depositário único do poder e entregou o governo ao Conselho dos Comissários do Povo. O Partido Comunista passou a ser o único partido legal. Em agosto, já depois do início da guerra civil, a família real dos Romanov é fuzilada. No X congresso do partido, em 1921, foi proibida a existência de facções no seio da própria organização.
O Estádio Lênin
Quem combinava os meus encontros com a russinha Lídia pelo telefone era Valôdia, apelido de Vladimir, o primeiro russo com quem travei amizade na Lumumba. Ele vivia no quarto ao lado do meu e nos entendíamos em francês. Um dia, as aulas ainda não tinham começado, aparece com dois bilhetes para o futebol e me convida para ver a URSS enfrentar a Polônia no Estádio Lênin. Os soviéticos venceram o embate por dois a zero mas a emoção maior deu-se antes do jogo. Minutos antes do pontapé inicial, o estádio, com capacidade para cem mil pessoas, estava com a sua lotação pela metade. De repente, milhares de soldados do exército, da tropa do serviço militar obrigatório, começam a entrar por todas as portas de acesso às arquibancadas. Levei um susto e até pensei numa situação de perigo, sei lá, um qualquer ato terrorista, ou ainda um golpe de estado. Valôdia riu e me tranquilizou. Como o exército soviético era muito grande, com mais de 7 milhões de efetivos, sempre havia pessoal disponível para encher uma arquibancada. Nos cinemas, havia sempre um batalhão, a qualquer hora em qualquer uma das centenas de salas de Moscou. Após a subida de Garbatchov ao poder e a perestroika, quando o rock tomou de assalto o país, os concertos saíram do submundo para estádios repletos de soldados, que não hesitaram em aproveitar os ventos de liberdade para requebrar o corpo ao som das guitarras elétricas. Até os brasileiros do grupo Engenheiros do Hawaii tiveram o privilégio de uma platéia destas quando atuaram em Moscou em novembro de 1989 no único show em que a sala de espetáculos não foi ocupada apenas pelo brasileiros da Lumumba e seus amigos.
Em 1985, voltei ao Estádio Lênin para assistir o Brasil ser campeão do mundo em (...), vencendo a (....) por um a zero. Chovia a cântaros e ficamos completamente encharcados. Apesar da chuva, o grupo de brasileiros fez um berreiro que chamou a atenção do estádio inteiro. Imaginem se tivessem deixado passar os instrumentos de percussão, que a polícia confiscou na entrada. Marcos, Zau e eu não fomos com os brasileiros ao estádio mas antes com Misha e Gênia (Michail e Evgueni, respectivamente), os nossos primeiros amigos moscovitas, que aproveitaram que estavam conosco para berrar como se fossem estrangeiros, já que aos soviéticos não eram permitidas tais manifestações nas provas esportivas. Duas semanas mais tarde, decorreu no estádio a abertura do festival da juventude dos países socialistas, que se realizava periodicamente e era uma montra da arte, cultura e desporto dos países que giravam na órbita de Moscou. Eu vivia a quatro quilómetros do estádio e assistia pela televisão. Onde eu morava, a chuva continuava mas no estádio fazia sol. Os soviéticos, nos dias de festa, costumavam limpar o céu onde iriam decorrer as solenidades oficiais, bombardeando um produto químico nas nuvens com a ajuda de aviões da força aérea.
A língua russa
O meu progresso rápido com a língua russa deu-se por vários motivos. Em primeiro lugar, por causa do meu professor, que falava espanhol muito bem, pois havia morado em Cuba, e tinha um método muito rápido de aprendizado. O russo é uma língua como o latim e o alemão, em que quase não se utilizam as preposições e não há artigos. Para dar sentido aos verbos, o predicado sofre variações, as chamadas “declinações”, que tanto sofrimento causaram aos estudantes brasileiros do liceu quando o latim era uma língua obrigatória, antes de ser abolida nos anos (?). Por exemplo, no caso dos nomes terminados em “ov” ou “ev”, esta terminação significa “da família de”. No caso de Garbatchov, o “ov” indica que ele pertence à família dos “gorbis” (que em russo significa corcunda). Ao contrário de outros professores, que utilizavam o manual indicado para estrangeiros, em que a língua era ensinada aos poucos, o professor Vassili preferiu-nos explicar-nos os casos da língua (que variam em função dos verbos e determinam a declinação) e partir logo para a prática. Para isso, ele tinha uma grande tabela com as terminações dos cinco casos da língua russa e, a cada aula, torpedeava-nos com perguntas, obrigando-nos a falar. Enquanto isso, a maioria dos professores adotava o método oficial e ia dando os casos aos poucos, no decorrer do ano letivo. Alguns anos mais tarde, quando fui deportado da Inglaterra e passei seis meses no Brasil, tive a oportunidade de utilizar o método do professor Vassili. Dei aulas a três turmas da Casa de Amizade Porto Alegre-URSS e lições particulares ao jovem pianista porto-alegrense Alexandre Dossin, que ganhara uma bolsa para o Conservatório Tchaikovski. Despejei-lhe logo os casos em cima e em dois meses ele estava já pronto para se defender em Moscou. Outro fator que não se pode desprezar é que na União Soviética não havia mais que cinco ou seis alunos em cada sala de aula, o que aumentava muito o rendimento dos estudantes. Com uma turma maior, é necessário respeitar o ritmo de aprendizado de cada um, enquanto que, com menos alunos na sala de aula, é possível uma maior proximidade e um melhor acompanhamento.
Outra ajuda preciosa no idioma recebi de uma estudante russa que conheci logo na primeira semana, quando todos os brasileiros da Patrice Lumumba foram levados a assistir um festival de música. Lídia tinha 17 anos e estudava numa escola especial para desenhistas. Estas escolas especiais eram a grande diferença que o sistema soviético de ensino apresentava em relação ao inimigo do ocidente. Se a criança tivesse habilidade em algum instrumento ou aptidões para a ginástica, era logo desde a escola primária inscrita num destes estabelecimentos. Ou seja, a especialidade era obtida nos três diferentes níveis de ensino, do primário ao superior. Os soviéticos sempre deram muita importância à arte e ao esporte, que serviam também de propaganda do regime, como os bailarinos do Bolshoi ou os atletas nos Jogos Olímpicos. O mal de tudo isto é que o destino de cada criança era forjado pelas orientações políticas dos membros do PCUS. Só os melhores cursavam o ensino superior. Lídia contou-me que ela não era uma aluna muito dotada e que, no final da escola, teria que trabalhar. Provavelmente, iria ser indicada a alguma editora e ilustrar livros escolares ou de leitura. De certa forma, o sistema estruturava a vida da pessoa, desde a infância, subsidiando o ensino e conferindo-lhe uma espécie de “salário”, o estipêndio, até terminar o curso superior, para no final lhe arranjar um emprego. Juntamente com o diploma, aos formandos era estipulada uma tarefa: trabalhar rumo ao socialismo.
Quando conheci Lídia, eu não falava um ai em russo, pois as aulas ainda não haviam começado. Ela era muito bonita e parecia-me um sonho naquele seu uniforme de colegial. Eu estava no hall do teatro onde decorria o festival, quando alguém me falou qualquer coisa em russo. Um estudante mais antigo que estava do meu lado, também ele brasileiro, explicou que uma turma de desenhistas queria fazer o meu retrato em carvão. Acedi, meio incrédulo, e foi aí, enquanto eu posava, que os nossos olhos se cruzaram e pintou logo uma grande atração mútua. No final, eu queria comunicar com ela, mas não nos entendíamos. Ela não falava nada de inglês e então peguei-a num braço e procurei alguém que servisse de intérprete. A coincidência maior viria revelar-se agora. Ela morava na mesma estação de metrô da universidade e marcamos de nos encontrar no domingo.
Prevendo dificuldades de comunicação, comprei dois dicionários pequenos (russo-inglês e vice-versa), que foram de muita valia. No princípio do nosso relacionamento (que durou até o regresso das férias de inverno), limitávamos a apontar palavras no dicionário para nos fazer entender. Quando as aulas começaram, eu pude colocar em prática os preciosos ensinamentos do professor Vassili. Naquele primeiro dia, Lídia me levou a conhecer a belíssima Galeria Tretiakov, o mais completo museu da arte russa do país. À porta da galeria, havia uma fila quilométrica, que dava volta ao quarteirão. Lídia não se perturbou e, a um dos guardas da polícia que fazia a segurança, mostrou a sua caderneta de estudante, argumentando qualquer coisa naquela língua estranha e apontando para mim. O guarda olhou em minha direção, refletiu por alguns instantes e fez sinal para que entrássemos, para espanto meu. Lídia me explicou depois que havia dito ao guarda que éramos estudantes e que nos haviam encomendado um trabalho urgente. Certamente, o polícia não quis se meter em complicações, pela maneira ocidentalizada como nos vestíamos. Ao contrário da imensa maioria dos soviéticos, que só tinham a sua disposição roupas de confecção ordinária, a russinha usava um casaco de peles comprado no estrangeiro, o que só por si fazia supor que não pertencia a uma família qualquer. Eu, com os meus cabelos compridos, e Lídia bem podíamos ser filhos de algum general, diplomata ou artista de renome. Foi assim que descobri que, na União Soviética, também se davam carteiraços.
Após a visita à galeria, Lídia levou-me a passear no Parque Gorki, à beira do rio Moscou, onde milhares de moscovitas passeiam no fim de semana. Desta vez, Lídia não pôde evitar a fila para a roda-gigante e lá ficamos à espera da nossa hora, atrás de algumas dezenas de outros casais. Entrar numa fila e esperar por muito tempo para fazer alguma coisa, como ir a um restaurante ou apenas comprar laranjas, era uma coisa que fazia parte do cotidiano das pessoas no leste europeu e ninguém parecia importar-se muito com isso. Enquanto aguardávamos, procurei o significado de montanha-russa no dicionário e qual não foi a minha surpresa quando descobri que os russos a chamavam de montanha-americana. A guerra fria havia chegado aos equipamentos de diversão. Deve ter sido obra de algum funcionário do partido, pensei eu, ou quem sabe não foi o Politburo que decidiu, na mais alta instância do pais, que era necessário responder à letra a esta provocação do imperialismo americano. Tentei explicar para Lídia, mas ela não percebeu o que eu queria dizer, pelo que desisti da tarefa. Era melhor não provocar um incidente diplomático na nossa recém estabelecida relação, entendi eu.
A roda-gigante era mesmo gigante. A vista lá do alto acabava por compensar aquela espera toda. Além do mais, movimentava-se muito devagar e acabamos por passar uma boa meia hora sentados. Aproveitei o momento para apanhar Lídia desprevenida e beijar-lhe. Ela correspondeu desajeitadamente e percebi que era o seu primeiro beijo. Raios. Apesar de eu ter 23 anos naquela época e ser apenas seis anos mais velho, senti-me corrompendo aquela beleza adolescente. As russas não eram nada ingênuas, principalmente as moscovitas, soube depois, mas Lídia era a primeira que conhecia e aquela foi a primeira impressão. Depois do beijo, a russinha deu-me a mão. Era a oficialização do namoro. Quando já começava a dominar o russo, Lídia me explicou que somente a sua mãe sabia do nosso envolvimento. Era um risco muito grande para a sua família. O seu pai era físico nuclear e a nenhum familiar era permitido manter contato com estrangeiros.
O meu namoro com a russinha não passou de um relacionamento adolescente. Lídia era mesmo uma menina especial, que me amava, e tinha sido educada para ser uma boa esposa. Para ela, não havia dúvidas de que seríamos marido e mulher. Eu não queria magoar-lhe mas também estava apaixonado. Sabia o quanto era quase impossível aquele amor, por várias razões, mas não conseguia deixar de comparecer àqueles encontros, onde dávamos longos passeios em parques cobertos de folhas amareladas por causa do outono. Foi por esta altura que aprendi a dizer em russo as palavras sol, coração e amor.
A nossa relação terminou quando Zau me deu um ultimato na viagem de férias a Leningrado, na segunda semana de janeiro do ano seguinte. Quando vivíamos no Brasil, a bela baiana Zau apregoou sempre uma relação aberta, não fosse a Bahia a extensão da África no Brasil, terra do muso da contracultura brasileira, Caetano Veloso, que por sinal é de Santo Amaro da Purificação, no recôncavo baiano, a mesma cidade onde Zau nasceu. Quando fiz-lhe ver esta prerrogativa que eu tinha, aceitou contrariada que eu me encontrasse com Lídia, pois eu não fiz segredo da nossa relação. Só que o namoro já durava uns meses e eu, pressentindo que a coisa poderia ficar mesmo séria, resolvi acabar com tudo. No regresso das férias, menti a Lídia que iria regressar ao Brasil. A russinha ficou desolada e eu me senti um patife. Na hora da despedida, Lídia chorava copiosamente. Foi com um nó na garganta que fiz desaparecer da minha vida aquela linda adolescente russa, que significava para mim um mundo completamente diferente e excitante, com uma pitada de romance de espionagem no tempo da guerra fria. E quem sabe não era mesmo, pois não era de duvidar que o KGB seguisse atentamente os passos dos familiares de físicos nucleares.
Anos mais tarde, estudava eu música na escola de música Gnessin, quando reencontro Lídia no metrô. Por coincidência, as nossas escolas se localizavam perto uma da outra e inclusive a estação do metropolitano era a mesma da Galeria Tretiakov, o que me fazia temer que um dia iria vê-la novamente. A linda russinha havia perdido a inocência juvenil e era agora uma mulher madura. Contou-me que sofreu bastante após a nossa separação e que não conseguiu me esquecer durante muito tempo. Que desenhou o meu rosto em todas as ilustrações que fez e me vestia de oficial de cavalaria a comandar exércitos em batalhas históricas. Me sentindo muito mal, expliquei-lhe o porque da minha atitude com o máximo de sinceridade. Mas Lídia já não acreditava no amor, a experiência da vida tinha lhe tirado esta esperança. Contou-me que o pai havia morrido (ou assassinado, pensei eu), que juntou-se com um rapaz, contra a vontade da mãe, indo viver com os sogros, mas que já havia regressado à casa por causa dos problemas de alcoolismo do seu companheiro. Revelou-me que não chegou a gostar dele como havia gostado de mim e que fui sempre o maior amor da sua vida. Desta vez, ao contrário da primeira vez que nos encontramos, entendi Lídia na perfeição. Disse que gostaria de me ver novamente e que o seu número de telefone continuava o mesmo. Prometi que ligaria, mesmo sabendo que não. O encanto havia se quebrado para sempre. Senti uma ponta de remorso por tudo o que fiz. Pensei que podia ter salvo Lídia do seu destino, o de uma moça moscovita esmagada pelo peso de uma sociedade que não lhe dava muito espaço para a individualidade. A russinha era mais uma peça do grande coletivo soviético, com a existência igual a de milhões de jovens moças da sua idade, que viviam na casa dos pais e que tinham maridos ou namorados que gostavam de abusar do vodka.
O conhecimento do idioma russo viria a ser de grande utilidade mais de dez anos depois de ter saído de Moscou, quando morava em Portugal e havia me tornado jornalista. Revertendo um fluxo histórico e secular, em que milhões de portugueses deixavam a pátria em busca de uma vida melhor, o pequeno país à beira-mar plantado passou a ser um destino de imigrantes na virada do milênio. A construção de importantes infra-estruturas no país, financiadas pela União Europeia, deu trabalho a milhares de cidadãos das antigas repúblicas soviéticas, que abriram as fronteiras com a queda do comunismo e ingressaram numa crise econômica sem precedentes. Este ciclo de obras em Portugal começou com a Exposição Universal de Lisboa, em 1998, e teve continuidade com a construção dos estádios e infra-estruturas para o campeonato europeu de futebol de 2004, coincidindo com o período de maior entrada de fundos da União Européia. Neste período, Portugal concedeu vistos de trabalho temporário a mais de 400 mil estrangeiros, que vieram dar um impacto positivo na economia portuguesa. Mais de metade dos novos imigrantes eram das repúblicas ex-soviéticas e falavam russo, que era a língua imperial. Como eles chegavam a Portugal e não entendiam nada, criei o primeiro programa de rádio no país em língua russa, numa emissora de âmbito regional com sede em Almeirim, cidade do distrito de Santarém. Em pouco tempo de antena, a audiência do programa se multiplicou e atingiu o seu auge durante o período de legalização extraordinária de estrangeiros aberto pelo governo português. No programa, eu tentava dar informações sobre a legislação e respondia em direto às questões dos ouvintes, que ligavam para o estúdio.
Outra ajuda preciosa no idioma recebi de uma estudante russa que conheci logo na primeira semana, quando todos os brasileiros da Patrice Lumumba foram levados a assistir um festival de música. Lídia tinha 17 anos e estudava numa escola especial para desenhistas. Estas escolas especiais eram a grande diferença que o sistema soviético de ensino apresentava em relação ao inimigo do ocidente. Se a criança tivesse habilidade em algum instrumento ou aptidões para a ginástica, era logo desde a escola primária inscrita num destes estabelecimentos. Ou seja, a especialidade era obtida nos três diferentes níveis de ensino, do primário ao superior. Os soviéticos sempre deram muita importância à arte e ao esporte, que serviam também de propaganda do regime, como os bailarinos do Bolshoi ou os atletas nos Jogos Olímpicos. O mal de tudo isto é que o destino de cada criança era forjado pelas orientações políticas dos membros do PCUS. Só os melhores cursavam o ensino superior. Lídia contou-me que ela não era uma aluna muito dotada e que, no final da escola, teria que trabalhar. Provavelmente, iria ser indicada a alguma editora e ilustrar livros escolares ou de leitura. De certa forma, o sistema estruturava a vida da pessoa, desde a infância, subsidiando o ensino e conferindo-lhe uma espécie de “salário”, o estipêndio, até terminar o curso superior, para no final lhe arranjar um emprego. Juntamente com o diploma, aos formandos era estipulada uma tarefa: trabalhar rumo ao socialismo.
Quando conheci Lídia, eu não falava um ai em russo, pois as aulas ainda não haviam começado. Ela era muito bonita e parecia-me um sonho naquele seu uniforme de colegial. Eu estava no hall do teatro onde decorria o festival, quando alguém me falou qualquer coisa em russo. Um estudante mais antigo que estava do meu lado, também ele brasileiro, explicou que uma turma de desenhistas queria fazer o meu retrato em carvão. Acedi, meio incrédulo, e foi aí, enquanto eu posava, que os nossos olhos se cruzaram e pintou logo uma grande atração mútua. No final, eu queria comunicar com ela, mas não nos entendíamos. Ela não falava nada de inglês e então peguei-a num braço e procurei alguém que servisse de intérprete. A coincidência maior viria revelar-se agora. Ela morava na mesma estação de metrô da universidade e marcamos de nos encontrar no domingo.
Prevendo dificuldades de comunicação, comprei dois dicionários pequenos (russo-inglês e vice-versa), que foram de muita valia. No princípio do nosso relacionamento (que durou até o regresso das férias de inverno), limitávamos a apontar palavras no dicionário para nos fazer entender. Quando as aulas começaram, eu pude colocar em prática os preciosos ensinamentos do professor Vassili. Naquele primeiro dia, Lídia me levou a conhecer a belíssima Galeria Tretiakov, o mais completo museu da arte russa do país. À porta da galeria, havia uma fila quilométrica, que dava volta ao quarteirão. Lídia não se perturbou e, a um dos guardas da polícia que fazia a segurança, mostrou a sua caderneta de estudante, argumentando qualquer coisa naquela língua estranha e apontando para mim. O guarda olhou em minha direção, refletiu por alguns instantes e fez sinal para que entrássemos, para espanto meu. Lídia me explicou depois que havia dito ao guarda que éramos estudantes e que nos haviam encomendado um trabalho urgente. Certamente, o polícia não quis se meter em complicações, pela maneira ocidentalizada como nos vestíamos. Ao contrário da imensa maioria dos soviéticos, que só tinham a sua disposição roupas de confecção ordinária, a russinha usava um casaco de peles comprado no estrangeiro, o que só por si fazia supor que não pertencia a uma família qualquer. Eu, com os meus cabelos compridos, e Lídia bem podíamos ser filhos de algum general, diplomata ou artista de renome. Foi assim que descobri que, na União Soviética, também se davam carteiraços.
Após a visita à galeria, Lídia levou-me a passear no Parque Gorki, à beira do rio Moscou, onde milhares de moscovitas passeiam no fim de semana. Desta vez, Lídia não pôde evitar a fila para a roda-gigante e lá ficamos à espera da nossa hora, atrás de algumas dezenas de outros casais. Entrar numa fila e esperar por muito tempo para fazer alguma coisa, como ir a um restaurante ou apenas comprar laranjas, era uma coisa que fazia parte do cotidiano das pessoas no leste europeu e ninguém parecia importar-se muito com isso. Enquanto aguardávamos, procurei o significado de montanha-russa no dicionário e qual não foi a minha surpresa quando descobri que os russos a chamavam de montanha-americana. A guerra fria havia chegado aos equipamentos de diversão. Deve ter sido obra de algum funcionário do partido, pensei eu, ou quem sabe não foi o Politburo que decidiu, na mais alta instância do pais, que era necessário responder à letra a esta provocação do imperialismo americano. Tentei explicar para Lídia, mas ela não percebeu o que eu queria dizer, pelo que desisti da tarefa. Era melhor não provocar um incidente diplomático na nossa recém estabelecida relação, entendi eu.
A roda-gigante era mesmo gigante. A vista lá do alto acabava por compensar aquela espera toda. Além do mais, movimentava-se muito devagar e acabamos por passar uma boa meia hora sentados. Aproveitei o momento para apanhar Lídia desprevenida e beijar-lhe. Ela correspondeu desajeitadamente e percebi que era o seu primeiro beijo. Raios. Apesar de eu ter 23 anos naquela época e ser apenas seis anos mais velho, senti-me corrompendo aquela beleza adolescente. As russas não eram nada ingênuas, principalmente as moscovitas, soube depois, mas Lídia era a primeira que conhecia e aquela foi a primeira impressão. Depois do beijo, a russinha deu-me a mão. Era a oficialização do namoro. Quando já começava a dominar o russo, Lídia me explicou que somente a sua mãe sabia do nosso envolvimento. Era um risco muito grande para a sua família. O seu pai era físico nuclear e a nenhum familiar era permitido manter contato com estrangeiros.
O meu namoro com a russinha não passou de um relacionamento adolescente. Lídia era mesmo uma menina especial, que me amava, e tinha sido educada para ser uma boa esposa. Para ela, não havia dúvidas de que seríamos marido e mulher. Eu não queria magoar-lhe mas também estava apaixonado. Sabia o quanto era quase impossível aquele amor, por várias razões, mas não conseguia deixar de comparecer àqueles encontros, onde dávamos longos passeios em parques cobertos de folhas amareladas por causa do outono. Foi por esta altura que aprendi a dizer em russo as palavras sol, coração e amor.
A nossa relação terminou quando Zau me deu um ultimato na viagem de férias a Leningrado, na segunda semana de janeiro do ano seguinte. Quando vivíamos no Brasil, a bela baiana Zau apregoou sempre uma relação aberta, não fosse a Bahia a extensão da África no Brasil, terra do muso da contracultura brasileira, Caetano Veloso, que por sinal é de Santo Amaro da Purificação, no recôncavo baiano, a mesma cidade onde Zau nasceu. Quando fiz-lhe ver esta prerrogativa que eu tinha, aceitou contrariada que eu me encontrasse com Lídia, pois eu não fiz segredo da nossa relação. Só que o namoro já durava uns meses e eu, pressentindo que a coisa poderia ficar mesmo séria, resolvi acabar com tudo. No regresso das férias, menti a Lídia que iria regressar ao Brasil. A russinha ficou desolada e eu me senti um patife. Na hora da despedida, Lídia chorava copiosamente. Foi com um nó na garganta que fiz desaparecer da minha vida aquela linda adolescente russa, que significava para mim um mundo completamente diferente e excitante, com uma pitada de romance de espionagem no tempo da guerra fria. E quem sabe não era mesmo, pois não era de duvidar que o KGB seguisse atentamente os passos dos familiares de físicos nucleares.
Anos mais tarde, estudava eu música na escola de música Gnessin, quando reencontro Lídia no metrô. Por coincidência, as nossas escolas se localizavam perto uma da outra e inclusive a estação do metropolitano era a mesma da Galeria Tretiakov, o que me fazia temer que um dia iria vê-la novamente. A linda russinha havia perdido a inocência juvenil e era agora uma mulher madura. Contou-me que sofreu bastante após a nossa separação e que não conseguiu me esquecer durante muito tempo. Que desenhou o meu rosto em todas as ilustrações que fez e me vestia de oficial de cavalaria a comandar exércitos em batalhas históricas. Me sentindo muito mal, expliquei-lhe o porque da minha atitude com o máximo de sinceridade. Mas Lídia já não acreditava no amor, a experiência da vida tinha lhe tirado esta esperança. Contou-me que o pai havia morrido (ou assassinado, pensei eu), que juntou-se com um rapaz, contra a vontade da mãe, indo viver com os sogros, mas que já havia regressado à casa por causa dos problemas de alcoolismo do seu companheiro. Revelou-me que não chegou a gostar dele como havia gostado de mim e que fui sempre o maior amor da sua vida. Desta vez, ao contrário da primeira vez que nos encontramos, entendi Lídia na perfeição. Disse que gostaria de me ver novamente e que o seu número de telefone continuava o mesmo. Prometi que ligaria, mesmo sabendo que não. O encanto havia se quebrado para sempre. Senti uma ponta de remorso por tudo o que fiz. Pensei que podia ter salvo Lídia do seu destino, o de uma moça moscovita esmagada pelo peso de uma sociedade que não lhe dava muito espaço para a individualidade. A russinha era mais uma peça do grande coletivo soviético, com a existência igual a de milhões de jovens moças da sua idade, que viviam na casa dos pais e que tinham maridos ou namorados que gostavam de abusar do vodka.
O conhecimento do idioma russo viria a ser de grande utilidade mais de dez anos depois de ter saído de Moscou, quando morava em Portugal e havia me tornado jornalista. Revertendo um fluxo histórico e secular, em que milhões de portugueses deixavam a pátria em busca de uma vida melhor, o pequeno país à beira-mar plantado passou a ser um destino de imigrantes na virada do milênio. A construção de importantes infra-estruturas no país, financiadas pela União Europeia, deu trabalho a milhares de cidadãos das antigas repúblicas soviéticas, que abriram as fronteiras com a queda do comunismo e ingressaram numa crise econômica sem precedentes. Este ciclo de obras em Portugal começou com a Exposição Universal de Lisboa, em 1998, e teve continuidade com a construção dos estádios e infra-estruturas para o campeonato europeu de futebol de 2004, coincidindo com o período de maior entrada de fundos da União Européia. Neste período, Portugal concedeu vistos de trabalho temporário a mais de 400 mil estrangeiros, que vieram dar um impacto positivo na economia portuguesa. Mais de metade dos novos imigrantes eram das repúblicas ex-soviéticas e falavam russo, que era a língua imperial. Como eles chegavam a Portugal e não entendiam nada, criei o primeiro programa de rádio no país em língua russa, numa emissora de âmbito regional com sede em Almeirim, cidade do distrito de Santarém. Em pouco tempo de antena, a audiência do programa se multiplicou e atingiu o seu auge durante o período de legalização extraordinária de estrangeiros aberto pelo governo português. No programa, eu tentava dar informações sobre a legislação e respondia em direto às questões dos ouvintes, que ligavam para o estúdio.
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