Próxima estação, Tuapsé
No dia 9 de julho de 1984, o grande contingente de estudantes da Lumumba que havia terminado a faculdade preparatória embarcava para uma temporada no sul da Rússia que iria durar até o final do mês. A casa de descanso em que fomos instalados se localizava na costa do mar Negro, entre as cidades de Tuapsé e Sochi, e era um dos milhares de estebelecimentos daquele tipo que haviam sido construídos na região para os trabalhadores soviéticos. Para um russo, conseguir uma estadia numa casa destas era muito difícil, pelo baixo preço dos serviços, que eram subsidiados pelo estado, o que fazia com que milhões de trabalhadores eram candidatos em potencial a uma vaga destas durante o verão. Os habitantes locais aproveitavam a temporada para alugar quartos e casas, num negócio clandestino tolerado pelas autoridades.
Quando chegamos ao local, o professor responsável pelos estudantes latinos resolveu tirar o corpo fora, na hora da distribuição dos quartos, argumentando que os responsáveis pelo sanatório não aceitariam colocar um casal numa só habitação sem uma certidão de casamento. Tentei argumentar que Mariano já o tinha avisado da situação, que Zau e eu vivíamos maritalmente há dois anos, mas ele me respondeu que Mariano tinha ficado em Moscou. Irritado, resolvi fincar pé e lhe prometi que não iria sair dali, do pátio em frente à portaria onde tínhamos nos acomodado com a bagagem, se não nos fosse atribuído um quarto de casal. O homenzinho continuou a sua tarefa, distribuindo as chaves aos alunos da Lumumba, a hora do almoço ia se aproximando e nós continuávamos ali. Zau ainda tentou me convencer a aceitar a situação, pois daquele jeito ainda ficaríamos sem quarto. “Que nos enviem de volta para Moscou”, disse-lhe, decidido a levar a parada até o fim. Depois de umas duas horas de espera, com o sol bem alto e a temperatura nos fazendo lembrar que estávamos no verão, quando restavam poucos estudantes para acomodar, o professor veio até cá fora e disse que a minha teimosia tinha surtido efeito. “Parabens pela sua determinação”, me disse ao entregar a chave de um quarto de casal.
A casa de descanso ficava a alguns quilómetros de Tuapsé, no alto de uma colina perto do mar, numa zona típica de pequenas enseadas e montanhas que caracterizam a região. Havia um grande refeitório central, que partilhávamos com os russos em férias em sessões de almoço ou jantar de meia hora cada, rigorosamente cronometradas. Espalhadas por recantos nos montes, cercadas de árvores frutíferas, estavam as habitações. Ladeada por ciprestes, uma longa escada dava acesso ao mar e, lá em baixo, finalmente, a praia. Para quem estava acostumado ao mar da Bahia, era uma verdadeira decepção. Naquela zona do Mar Negro, as praias não são de areia mas sim de pedras. Sem chinelos, não era possível andar pela praia e, muito menos, entrar na água. O pior foi quando, no terceiro ou quarto dia, as medusas tomaram conta do mar e não saíram mais de lá. Houve que não se incomodasse e continuasse com os mergulhos, mas eu não consegui entrar mais na água, pois tinha a sensação nada agradável de estar dentro de uma enorme panela de sopa de legumes.
O Mar Negro nem sempre foi um mar, pois, há 22 mil anos atrás, era apenas um lago de água doce. Há cerca de 7 a 9 mil anos, com o degelo das calotas polares*, o nível da água do Mediterrâneo subiu e atravessou o estreito de Bósforo, na Turquia, transformando o lago em mar, porém com um grau de salinidade menor que nos demais oceanos. Segundo os estudiosos, este acontecimento, transmitido de geração em geração, através dos séculos, estaria na gênese do mito de Noé e a sua arca.
Para os estudantes da Lumumba, estavam reservadas muitas atrações e passeios durante aquela temporada de verão. Em lanchas de passageiros super poderosas, que funcionavam com motores de avião, segundo nos disseram, fomos levados a conhecer muitos lugares daquela zona costeira do Mar Negro. Um dos passeios mais longos que fizenmos nos levou até a cidade de Novarossíski, onde tivemos oportunidade de conhecer um incrível memorial de guerra, relativo a uma grande batalha que se dera naquele lugar durante a 2ª Guerra Mundial. Em formato de “V” ao contrário, subindo por um lado e descendo pelo outro, pudemos apreciar um museu com artefatos bélicos, destroços do sangrento confronto, e placares com a cronologia dos acontecimentos. Os detalhes da batalha, aquelas peças todas, tendo como música ambiente um hino marcial, chegavam a causar um arrepio na espinha, ao imaginar aqueles trágicos acontecimentos. No topo da lista dos heróis, gravada em letras metálicas no concreto do monumento, estava o nome de Leonid Brejnev. Segundo soube depois, o então secretário-geral do PCUS terá hiperbolizado a sua participação na batalha de Novarossiski, o que não terá sido difícil para ele, um adepto e seguidor do sistema de culto à personalidade.
No regresso ao barco, me deu vontade de urinar, o que me fez conhecer o mais impressionante banheiro público de índole comunista que conheci até hoje. No caminho da praia, havia um pavilhão enorme, com uns 50 metros de comprimento, sem quaisquer vasos sanitários ou mictórios. De cada lado do banheiro, havia um imenso buraco que percorria toda a extensão da construção. Quem quisesse fazer as suas necessidades tinha, como companhia, centenas de pessoas que entravam e saíam. Sem se importar com nada disso, os russos baixavam as calças e acocoravam-se à borda do cagatório, uns ao lado dos outros.
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