Friday, January 14, 2011

Rebeldia com causa

Após as férias de inverno, Ivan, que pertencia à direção da associação dos estudantes brasileiros, me convidou a participar num festival de música que a universidade iria realizar. O festival era aberto a estudantes de toda a União Soviética e tinha um pormenor que me fez recusar a proposta. Era um festival da canção política. Ivan insistiu com a idéia e sugeriu que eu escolhesse as canções que ele tratava do resto. Afinal, eu cantaria em português e os soviéticos não iriam entender nada. Além do mais, havia muito tempo que a colônia brasileira não participava de um festival assim, pelo que o brasileiro ficou todo contente.

Quando cheguei em Moscou, eu tocava algumas canções no violão e pouco mais. Quando pequeno, cantei em programas de televisão, por iniciativa da minha mãe, mas lá em casa não havia espaço para a música por causa do meu pai, oficial da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Só pude comprar um instrumento depois que saí de casa e comecei a trabalhar na revisão do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Sabia tocar algumas músicas do cearense Ednardo (aquele do Pavão Misterioso) e outras que o amigo Nei Lisboa me ensinara. Numa primeira festa que se organizou na faculdade preparatória, fui literalmente convocado a participar, pois, já que trazia um violão comigo e sabia tocar, então não havia como fugir. Cantei duas músicas do Neizinho e fiquei popular entre os estudantes da preparatória. Sem que eu soubesse, o responsável pelo jornal da universidade estava presente na sala e destacou a minha apresentação na primeira página da edição seguinte.

Um panamenho que tocava bongô conhecia um pianista tcheco que estudava num instituto de línguas perto da universidade e formamos um grupo para o festival. Seriam dois dias de eliminatórias e uma gala no sábado que iria contar com um representante do comitê central do PCUS. Esvaziamos uma garrafa de conhaque no banheiro e antes de entrar no palco eu coloquei uma boina preta na cabeça e uns óculos escuros. Com a barba e o cabelo comprido, parecia que o Che Guevara tinha ressuscitado e iria agora participar com o seu violão num festival para invisuais. Quando entramos no palco, a reação da plateia foi de estupefacção, pois certamente não estava à espera de tal ousadia. Havia ensaiado o nome da primeira canção em russo e disparei ao microfone: “pra viajar no cosmos não precisa gasolina”, o que provocou o delírio dos estudantes latinos, que começaram a gritar. Foi preciso esperar que se acalmassem para que pudéssemos começar a tocar. Entretanto, começo a notar algum nervosismo e troca de olhares entre os responsáveis da universidade que estavam na primeira fila e faziam parte do júri. Antes de eu começar a cantar a canção propriamente propriamente dita, o checo tocava uma introdução que era parte de uma composição que ele estava fazendo, e que era meio pesada e sorumbática. Aquilo durou uns minutos e eu percebia que a movimentação entre os soviéticos aumentava. Talvez sentissem aquilo tudo como uma provocação. Que porra de canção política era aquela? Quando terminamos, a casa veio abaixo. Os latinos entraram em histeria. Pulavam, gritavam, extravasando uma alegria contida, armazenada talvez há muitos anos. Faltava tocar a segunda canção, mas o povo não se calava. O apresentador pedia silêncio mas ninguém queria ouvir. Foi preciso esperar quase cinco minutos para recomeçar. O presidente do clube da universidade, responsável pela organização do festival e muito provavelmente um agente do KGB, gesticulava e dava a entender que gostaria de saber o que se passava ali. Quem teria deixado passar uma coisa daquelas? Quem era o responsável? Lá tocamos a segunda canção - a minha primeira composição, tipo blues - que terminava com um falsete. Nem terminamos de tocar e a multidão já se levantava de novo. Algo os havia despertado e aquele trio parecia ter sido o estopim para uma explosão de alegria há muito adormecida. Saímos rapidamente do palco, enquanto ouvíamos a plateia a gritar, a exigir a nossa presença. O apresentador de serviço estava quase a conseguir levar a sua missão ao destino quando regressamos ao auditório onde estava Zau e o nosso grupo de amigos. Quando o público nos viu entrar por uma porta lateral, a gritaria recomeçou. Continuamos a ser ovacionados ainda por alguns minutos, o povo levantou todo, os estudantes queriam nos cumprimentar, nos tocar, dizer que tinha sido verdadeiramente revolucionária a nossa prestação.

Tanta receptividade do público presente no festival não encontrou eco no corpo de jurados. O festival tinha um formato que não premiava um vencedor específico, apenas selecionava os participantes para a gala final, que seria transmitida em direto pela televisão estatal. E é claro que os responsáveis políticos não estavam nem um pouco dispostos a deixar que aquele trio incendiário se apresentasse perante o país inteiro. O resultado não podia ser outro, fomos desclassificados. No meio do público, começaram a surgir algumas vozes de indignação. Alguns latinos mais exaltados gritavam, xingavam nomes aos soviéticos até que um músico russo, participante do festival, pediu a palavra para falar. Elemento de um grupo conhecido em toda a União Soviética, defendeu-nos e criticou a organização do festival. O meu russo ainda era meio claudicante, mas o brasileiro Ivan ia traduzindo tudo. O homenzinho foi realmente corajoso, pois eu próprio achava que não valia à pena tanta confusão. Mas o russo continuava. Chegou mesmo a ser grosseiro com a organização e até hoje me pergunto se ele continuou a fazer o que fazia até então e não terá sido deportado para a Sibéria.

A música sempre foi sempre algo de especial para mim. Os festivais da TV Record marcaram a minha infância profundamente. Sempre gostei de cantar e, quando comecei a tocar os primeiros acordes no violão, eu só queria saber de interpretar algumas músicas para poder brilhar em festas e acampamentos e, é claro, conseguir umas meninas. Só que a participação no festival foi uma emoção muito forte e inesperada, que quase não me deixou dormir naquela noite. Resolvi que iria tentar mudar de curso e estudar música. Me disseram que era um processo muito difícil mas nada impossível. Havia casos de estudantes que conseguiram sair da Lumumba mas tinha que se ter o aval do partido comunista, no meu caso, o brasileiro. Fui com Humberto, presidente do coletivo brasileiro, falar com a responsável pelos estrangeiros, a temível Ala Mitrofânovna, secretária da reitoria da universidade. Surpreendentemente muito simpática, disse-me que eu cantava muito bem e informou-nos que era necessário apenas escrever uma “zaiavlênie” (uma declaração, em russo) e endereçá-la ao reitor. E, obviamente, que não faltasse o selo do PCB. Merda, pensei eu. A tal da “zaiavlênie” representava, na altura, a burocracia por excelência do estado soviético. Para tudo era preciso escrever uma: o papel iria circular de gabinete em gabinete até parar à secretária de algum burocrata e ali ficar, provavelmente alguns anos, à espera de uma resposta. Dei para mim o prazo de dois anos, para tentar aprender a língua e, se não conseguisse a transferência, o que era o mais provável, regressava à casa. Pois estava enganado. Passados um ano e alguns meses, a resposta foi positiva. O brasileiro Ivan, que era ainda o terceiro elemento da troika do PCB em Moscou, garantiu a aprovação partidária para o meu intento e foi quem me ajudou a encontrar uma escola de música quando eu abandonei a universidade.

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