O Cavaleiro da Esperança
Marcos e eu entramos em rota de colisão com alguns elementos do coletivo brasileiro desde o princípio da nossa estada na União Soviética, nomeadamente com os elementos ligados ao PCB, e chegamos a ter conhecimento que a nossa conduta tinha sido discutida em algumas instâncias do partido no Brasil. Ao contrário da imensa maioria dos estudantes brasileiros, tínhamos um passado de engajamento na luta contra a ditadura militar brasileira, que ainda vigorava naquela época, pelo que era-nos difícil acreditar nas maravilhas do estado soviético que eram apregoadas pelos estudantes ligados ao PCB e que de certa forma controlavam a associação estudantil. Marcos era filiado ao PCB na Bahia e eu militara no movimento estudantil na década de 70, chegando a colaborar com a Tendência Socialista de MDB, do deputado gaúcho Américo Copetti. As nossas diferenças com esta ala do coletivo brasileiro acentuaram-se nas assembleias que se realizavam periodicamente e que retratavam um pouco o cisma dentro do próprio partido comunista, que teve lugar quando Luís Carlos Prestes foi destituído do cargo de secretário-geral do PCB, em 1980, sendo substituído por Giocondo Dias.
Os membros do PCB em Moscou provavelmente receberam a missão de tentar catequizar os prepos brasileiros para o seu lado da barricada, pois condenavam abertamente o que consideravam uma traição de Luís Carlos Prestes. Mas como este ainda era um nome imaculado entre os soviéticos, tinham que amargar a presença e a influência que os filhos do mítico capitão tinham no coletivo brasileiro. Estes, por sua vez, apesar de educados na URSS, não abdicavam do convívio com os compatriotas, sendo que as filhas mulheres de Prestes eram todas casadas com estudantes brasileiros. Ao contrário do que os estudantes ligados ao PCB nos quiseram fazer crer nos contatos iniciais, os filhos de Prestes eram muito simpáticos e pessoas muito mais interessantes que a maioria dos brasileiros da Lumumba. Posso dizer que, com o passar dos anos, foram dos amigos brasileiros mais fiéis que Zau e eu tivemos, pois Marcos resolveu voltar para terminar o curso interrompido de jornalismo na universidade de Salvador, na Bahia.
Os secretários dos partidos comunistas estrangeiros eram considerados futuros chefes-de-estado na União Soviética e, enquanto permanecessem em território soviético, tinham regalias condizentes com o seu estatuto. Exilado em Moscou pela segunda vez em 1970, com a segunda mulher e os sete filhos pequenos, Luís Carlos Prestes possuía um apartamento numa das principais avenidas da capital, a avenida Gorki, situado a menos de 500 metros do Kremlin, com uma vista privilegiada para a Praça Vermelha. O apartamento era descomunalmente grande para os padrões soviéticos (e também para os brasileiros) e estava localizado num edifício habitado por figurões do regime, como militares de alta patente e políticos do 2º escalão. Igor, um russo casado com uma brasileira, não deixou de exprimir um oh! de espanto ao entrar no apartamento de Prestes pela primeira vez.
Nas suas deslocações a Moscou, Luís Carlos Prestes gostava de reunir os estudantes brasileiros no seu apartamento. Foi com alguma expectativa que comparecemos ao convite, Zau, Marcos e eu, de visitar Luís Carlos Prestes pela primeira vez, afinal, não é todos os dias que se encontra um vulto histórico do Brasil, que todos nós conhecíamos das narrativas dos livros de escola. Fomos recebidos por Mariana, a filha caçula do lendário capitão, que nos levou até a biblioteca, onde estava o seu pai, sentado à janela, com um livro entre mãos. Prestes levantou-se e veio nos cumprimentar. Nesse momento, me lembrei do que minha mãe dizia, quando eu era pequeno, que Prestes tinha sido um homem muito bonito, o que terá talvez contribuído para criar uma aura romântica de revolucionário ao seu redor. Ao contrário da imagem que eu criara no meu inconsciente, Prestes era um homem de baixa estatura, arqueado pelo peso da idade, porém com um ar sereno e um olhar profundo de quem já viu e passou por muita coisa.
Na sala do apartamento, estava já um grupo de estudantes brasileiros, que também tinham sido convidados. Prestes ainda demorou-se um pouco mais na biblioteca, talvez dando uma última lida nos apontamentos que tinha feito para a ocasião. O que eu pensava que seria um encontro informal, onde Luís Carlos Prestes iria contar algumas histórias, responder a perguntas, era na realidade um meeting político. No vigor dos seus 86 anos, extremamente lúcido, Prestes leu um discurso de quase três horas, cumprindo uma tradição dos líderes de esquerda, que gostam de fazer grandes intervenções, e onde previa uma revolução iminente no Brasil, pois estavam se reunindo todas as condições históricas para tal. Apesar do lado meio quixotesco da história, Prestes era um revolucionário que ainda acreditava nos seus ideais. Podia se discordar das suas posições, mas nem um pouco questionar o seu valor enquanto homem íntegro, que acreditou sempre na construção de um mundo mais justo.
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