Serguei, o poliglota
Num dia que nos deslocamos para visitar a cidade de Sochi, que hoje faz parte da Rússia mas já pertenceu à Georgia*, conhecemos Serguei, um russo com o qual mantivemos contato durante muitos anos, pois viajava frequentemente a Moscou. Marcos, Zau e eu tínhamos ido visitar a casa de Igor, um russo que estudava na Lumumba e, na altura, namorava uma brasileira que estudava história, a Madalena (uns meses depois, os dois casaram, tiveram um filho e, no final do curso, emigraram para o Brasil). Vínhamos os cinco, caminhando pela orla, quando Marcos começou a cantar uma canção qualquer, que não me lembro o nome, e alguém, à nossa frente, exclamou: “Esta canção é do Jorge Ben!”, para nosso grande espanto. Serguei era um russo formado em letras, com cerca de 40 anos, moreno e baixa estatura, que falava fluentemente várias línguas. A sua especialidade eram o inglês e o alemão, mas, por conta própria, estudara português e espanhol. Pela primeira vez na sua vida, tinha a oportunidade de utilizar a língua de Camões, confessou-nos mais tarde, e, o mais incrível, é que o fazia com bastante desenvoltura.
Apesar do curso superior, Serguei não trabalhava numa atividade compatível com as suas habilitações. Por razões políticas, foi afastado do instituto de línguas, em Sochi, onde trabalhou por alguns anos, e agora trabalhava como balconista numa livraria do estado. Para reforçar o orçamento, dava aulas particulares de inglês e alemão. Ao longo dos anos em que vivi na ex-URSS, sempre conheci pessoas como Serguei. As condições para o crescimento intelectual que o sistema de educação soviético e todos aqueles subsídios à cultura possibilitavam aos seus cidadãos não tinham paralelo em país nenhum do mundo ocidental, mesmo entre os países ricos. O próprio Ígor estudava alemão e japonês por conta própria e, em poucos meses de convívio com Madalena, falava melhor o português do que ela o russo. Isto sem falar nos grandes mestres russos de xadrez, nos pianistas, matemáticos e físicos, cujas façanhas sempre transpuseram a cortina de ferro.
Sérguei era o típico russo da intelligentsia clandestina, que fazia parte do universo dissidente, com bons contatos entre a elite de Moscou. Pouco mais de um mês de nos ter conhecido, aparece inesperadamente em Moscou, na residência da Lumumba, nos convidando para passar uma tarde com uns amigos seus moscovitas e conhecer o que era uma “russki stol”, traduzindo, uma “mesa russa”. Com Serguei, tivemos o nosso primeiro contacto com o verdadeiro mundo russo, a sua cultura, os seus hábitos, a forma como cultivam as amizades. Nas suas deslocações a Moscou, que eram frequentes, ficávamos a conhecer pessoas interessantes, amigos seus que eram jornalistas, professores, redatores, em encontros à volta da mesa sempre regados com vodka. Ao mesmo tempo, veio a frequentar também o nosso grupo de amigos da universidade, em visitas frequentes à Lumumba. Anos mais tarde, quando eu já estudava música e frequentava a residência estudantil do conservatório Tchaikovski, Serguei sempre aparecia para as festas e concertos que se realizavam. Perdi o contato com Serguei, com grande pena, depois que tirei umas férias acadêmicas de um ano para tentar arranjar trabalho na Europa Ocidental, em junho de 1988. Quando regressei, passados 15 meses, a minha vida nunca mais foi a mesma. Separei-me de Zau e me perdi nas noites doidas da residência estudantil DUUZI, onde viviam todos os estudantes dos institutos de música e teatro de Moscou e onde residi durante um ano antes de abandonar o curso e emigrar para Portugal. Espero que, um dia, ao ler este livro, Serguei, que não precisa de esperar pela tradução, venha a me contactar por e-mail.
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