Feelings
Ao final da temporada no Mar Negro, embarcamos no transatlântico Maxim Gorki para um cruzeiro de dois dias que nos levaria até o porto de Odessa, no sul da Ucrânia, com uma paragem na cidade de Ialta, na Criméia. Quando olhamos o navio, nem acreditamos, mas, uma vez embarcados, a coisa mudou de figura. Aos estudantes, não estavam reservados camarotes. Tivemos que nos acomodar na parte de baixo do navio, numa zona onde só haviam poltronas, em meio a dezenas de russos. Até os professores não tiveram direito a uma cama, restando-lhes partilhar a nossa companhia, sem quaisquer privilégios. Tirando este detalhe, a viagem foi ótima, a comida do restaurante era muito boa e as duas noites de luar que passamos no Mar Negro foram inesquecíveis. Interessante foi notar que os russos em férias, apesar da rigidez do regime, comportavam-se em férias de uma maneira diferente do seu cotidiano habitual, onde a sisudez imperava nos locais de trabalho ou universidades. Já em Sochi pude observar que a cidade não era diferente de qualquer estação balnear dos países ocidentais, com as pessoas a andar em calções e chinelos, toalhas às costas, com muito maior descontração e um sorriso pouco habitual, talvez trazido pelo sol. Os russos que tomavam champanhe à beira da piscina do navio, que era bastante luxuoso, faziam grande algazarra, com brincadeiras talvez um pouco infantis, jogando-se uns aos outros na água. Pela conduta e pela maneira com que se expressavam, via-se que eram pessoas normais, simples trabalhadores, gozando merecidas férias no final de um ano operando numa indústria ou, quiçá, na construção civil. Para um médico ou professor universitário, seria certamente uma despesa maior no seu orçamento usufruir de semelhantes férias. Por outro lado, a elite soviética, membros do comitê central do PCUS, astronautas ou artistas famosos, gozava de privilégios um pouco maiores. Muitos tinham iates e lanchas, casas de descanso privadas, que lhes eram retirados quando caíam em desgraça.
Na primeira noite de viagem, quando assistíamos ao show no restaurante do navio, Marcos, Zau e eu apanhamos um grande susto quando o cantor de serviço, acompanhado por uma pequena orquestra, interpretou a canção Feelings, tão nossa conhecida. Até aquele momento, não havia me dado conta de como esta música do brasileiro Morris Albert, ou Maurício Alberto, era conhecida nos quatro cantos do planeta. Até na longínqua Indonésia, anos mais tarde, o ministro das relações exteriores, Ali Alatas, foi filmado num karaokê a cantá-la completamente embriagado*. O mais engraçado é que nunca encontrei alguém que soubesse que Feelings foi composta por um brasileiro. Para quem não sabe, Morris Albert, ou Maurício Alberto, fez esta canção no tempo da ditadura militar, no princípio dos anos 70, quando os principais artistas brasileiros ou foram presos e expulsos do país ou se auto-exilaram por conta própria, em protesto pela situação. Naquela época, a música em português quase desapareceu das rádios e os grupos e artistas adotavam nomes estrangeiros e passaram a cantar em inglês. Com a adoção da censura prévia, de parte do governo militar, muitas canções de gente como Chico Buarque e João Bosco, por exemplo, foram mutiladas e acabariam por se tornar conhecidas na rádio com a sua versão alterada. Os músicos que começaram a gravar em inglês confessaram décadas mais tarde que mudaram de idioma para não ter problemas com a censura. Quanto às letras das composições, como nem todos dominavam o inglês, eram citações de livros, instruções de algum manual de televisão, bulas de remédio, adaptadas à melodia da canção.
No comments:
Post a Comment