Friday, January 14, 2011

De saco cheio

Nos tienen hasta las huevas

Se havia alguma coisa que os responsáveis políticos da Patrice Lumumba não dispensavam, nem mesmo durante as férias, eram os meeting políticos. Já em Moscou era a mesma coisa. Toda e qualquer atividade era sempre anunciada com discursos de louvor ao regime. Os estudantes que integravam as células dos partidos comunistas e organizações de esquerda de seus países aproveitavam este gosto dos burocratas da universidade para organizar atos semelhantes. Uma data importante, um dia de libertação nacional, qualquer coisa que fosse servia de pretexto para se pedir um auditório à reitoria e organizar um sessão política. Estas cerimônias eram inócuas, ou seja, não produziam qualquer efeito nalguma revolução que estivesse prestes a acontecer, mas eram bem vistas perante a universidade e serviam para alguns estudantes se firmarem perante os soviéticos como grande revolucionários. Pelo menos, eles assim o pensavam.

Esses comícios em pequena dimensão eram sempre seguidos de um ato cultural. O material humano da Lumumba, os ritos e tradições de cada povo, era como que colocado numa vitrine, em exposição curiosa, associado à luta de classes como fator contributivo no processo revolucionário. Para desenvolver atividades de caráter cultural é que existia o Interclube da universidade, onde duas dedicadas professoras tratavam de comandar o que se podia chamar talvez de “núcleo artístico”. Era como uma companhia de dança e música, em que participavam os estudantes de todo país que tivesse número suficiente de alunos para organizar um número qualquer. Os colombianos dançavam a “cumbia”; os peruanos tinham um grupo de música andina; havia um grupo de danças africanas, de vários países; os sul-africanos tinham um coral espetacular, daqueles que Paul Simon utilizou no seu disco “Graceland”; os brasileiros dançavam o samba e por aí afora.

Já antes das férias, comecei a ser convidado a participar da caravana de artistas da Lumumba. Aos sábados, o grupo costumava se apresentar em clubes de bairros de Moscou, em auditórios de fábricas, para plateias de cidadãos comuns, que enchiam as salas para ver o que de certa forma era um espetáculo estrangeiro. Para mim, foi uma experiência interessante e bastante enriquecedora, que propiciava encontros inauditos, pois os russos sempre queriam dar uma palavrinha no final aos artistas. Nos anos em que estive na URSS, me apresentei, na maior parte das vezes sozinho ao violão, nos mais variados palcos. Cantei para platéias de veteranos da 2ª guerra mundial, para velhotes de lar de idosos, para russos da periferia de Moscou, para os pioneiros* e, inclusive, para os guerrilheiros do Arafat*. Os russos gostavam e aplaudiam muito, porque são um povo que respeita profundamente a cultura de outros povos, com uma intensa curiosidade por tudo o que fosse importado, ainda mais naqueles tempos de informação filtrada.

Ao mesmo tempo que dava um certo gozo participar nestas coisas, pois sempre era uma oportunidade de passear, conhecer outras pessoas e lugares, havia que se ter uma certa paciência em relação à politiquice e aos atores do ato anterior do programa. Quando estávamos na Moldávia, ninguém gostou quando, em pleno ensaio para a sessão de encerramento das férias, um dos professores exigiu que se formasse um grupo para se cantar um canção que fosse típica da América Latina, pelo que resolvemos fazer uma pequena vingança contra o Big Brother. Formamos um côro, acompanhado de vários violões e ensaiamos o clássico Guantanamera. Só que, por sugestão de um costarriquenho, substituímos o refrão por “hasta las huevas, nos tienen hasta las huevas”, que, traduzindo, quer dizer algo assim como “até os ovos, nos têm até aqui pelos ovos”. Quando nos apresentamos, no anfiteatro ao ar livre do campo de férias, depois do famigerado meeting, os estudantes latinos desataram às gargalhadas, o que fez com que uma das professoras do Interclube viesse me perguntar mais tarde o que se tinha passado, o que havíamos nós cantado para obter aquela reação da platéia. “Nada”, afirmei, “devem estar contentes porque vamos voltar para casa”, continuei, com vontade de me rir. Creio que não a consegui convencer, pois balançou a cabeça e murmurou algo como “ah, seus malandros”.

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